Quaresma: uma viagem de volta para Deus

fevereiro 17, 2021 / no comments

Quaresma: uma viagem de volta para Deus

 

Começamos hoje, com a Quarta-feira de Cinzas, o tempo sagrado da Quaresma. Como lembrou o Papa Francisco, na liturgia celebrada hoje em Roma, trata-se de “uma viagem de volta para Deus”. Durante quarenta dias, os cristãos católicos são convidados a uma profunda revisão de vida, para aprofundar a conversão, a caminho da Páscoa do Senhor.

É um percurso interior, realizado na sinceridade do próprio coração, que tem suas manifestações exteriores também. A conversão que acontece no íntimo da pessoa tem um reflexo nos ambientes em que se vive, tem sempre um impacto social.

As leituras da Missa de hoje, através do profeta Joel e de São Paulo, trazem um apelo a que voltemos a Deus de todo o coração (Jl 2, 12) e que nos deixemos reconciliar com Deus (2 Cor 5, 20). Jesus, no Evangelho de Mateus, chama a atenção para que fujamos da hipocrisia, cuidando para que as práticas externas da religião sejam coerentes com a fé que se professa interiormente (Mt 6, 1).

Nesta “viagem” somos convidados verificar os nossos caminhos e a perguntar para onde eles nos levam?“Aqui está o centro da Quaresma: para onde está orientado o meu coração? Tentemos saber: Para onde me leva o «navegador» da minha vida, para Deus ou para mim mesmo? Vivo para agradar ao Senhor, ou para ser notado, louvado, preferido, no primeiro lugar e assim por diante? Tenho um coração «dançarino» que dá um passo para a frente e outro para trás, amando ora o Senhor ora o mundo, ou um coração firme em Deus? Sinto-me bem com as minhas hipocrisias ou luto para libertar o coração da simulação e das falsidades que o têm prisioneiro?” (Papa Francisco, Homilia, 17 de fevereiro de 2021)

O “filho pródigo”, é um dos tantos “viajantes” da Sagrada Escritura e nos ensina que não há retorno a Deus sem experiência do perdão.AConfissão dos nossos pecados, “é o primeiro passo da nossa viagem de volta” (Papa Francisco). Através dela, “tornamo-nos, por nossa vez, propagadores do perdão: tendo-o recebido nós próprios, podemos oferecê-lo através da capacidade de viver um diálogo solícito e adotando um comportamento que conforta quem está ferido. O perdão de Deus, através também das nossas palavras e gestos, possibilita viver uma Páscoa de fraternidade.” (Papa Francisco, Mensagem para a Quaresma de 2021).

As cinzas que recebemos, recordam que a viagem terá um fim:ao pó retornaremos! (Gn 3, 19). Mas o Espírito de Deus sopra sobre o pó e nos garante a imortalidade com Cristo, que atravessou a morte humana e a derrotou. Assim, as cinzas se tornam sinais de que queremos nos comprometer com o que faz crescer em nós a verdadeira vida.

A prática da oração, do jejum e da caridade nos garantem não perder o rumo da “viagem”.

Na sua mensagem para a Quaresma deste ano o Papa Francisco sugere uma possível atualização dessas práticas ao dizer que “jejuar significa libertar a nossa existência de tudo o que a atravanca, inclusive da saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo, a fim de abrirmos as portas do nosso coração Àquele que vem a nós pobre de tudo, mas «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14): o Filho de Deus Salvador.” Por outro lado, recorda que“viver uma Quaresma de caridade significa cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia da Covid-19. Neste contexto de grande incerteza quanto ao futuro, lembrando-nos da palavra que Deus dera ao seu Servo – «não temas, porque Eu te resgatei» (Is 43, 1) –, ofereçamos, juntamente com a nossa obra de caridade, uma palavra de confiança e façamos sentir ao outro que Deus o ama como um filho.”

Neste contexto quaresmal, a Igreja no Brasil nos oferece o tema do diálogo, compromisso de amor, para uma vivência concreta da caridade entre nós na Campanha da Fraternidade, que neste ano tem o caráter de ecumênica. Sobre isso trataremos em outro momento.

Percorramos com esperança o caminho que nos é proposto, direcionando o coração para o horizonte de Deus que nos oferece sempre vida em abundância (Jo 10, 10)

 

Artigo de Dom Gilson Andrade de Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Renovar a visão do Batismo

janeiro 9, 2021 / no comments

Renovar a visão do Batismo

 

A história da Igreja testemunha que, à medida que o cristianismo foi se entranhando na vida social e passou a ser uma “religião de maiorias”, obtendo no século IV um certo status de “religião do Império”, percebeu-se um certo esfriamento quanto ao entusiasmo da era dos mártires. Tertuliano, no século III, afirmou que “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Esta foi, sem dúvida, uma experiência confirmada ao longo dos séculos, pois o Espírito Santo, de tempos em tempos, faz soprar sobre os seguidores de Cristo o vento da renovação necessária para que a fé cristã seja sempre estímulo de caminhos novos para a humanidade.

Desde o início, viu-se no catecumenato, ou seja, nos passos iniciais do conhecimento e da adesão a Cristo através dos sacramentos do batismo, da eucaristia e da crisma, o ponto de partida do compromisso de vida com a fé que ilumina toda a vida pessoal e social do cristão.

Como lembrou São João Paulo II, “perguntar a um catecúmeno: ‘Queres receber o Batismo?’ significa ao mesmo tempo perguntar-lhe: ‘Queres tornar-te santo?’. Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermão da Montanha: ‘Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste’ (Mt 5,48) (Novo MillenioIneunte, 31).Por isso, no mesmo lugar ele dizia que “se o Batismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do seu Espírito, seria um contrassenso contentar-se com uma vida medíocre, pautada por uma ética minimalista e uma religiosidade superficial.”

Celebrando neste domingo o Batismo de Jesus, temos a oportunidade de refletir sobre o fato inaugural da vida pública de Cristo, marcada pela força do seu ensinamento e dos milagres que realizava. É ocasião propícia também para pensar no nosso batismo e no compromisso radical que nele assumimos.

Temos que reconhecer, com certo pesar, a tendência a reduzi-lo a um “acontecimento social”. É verdade que o Batismo também tem essa dimensão, mas o problema é quando queremos aplicar a ele as mesmas exigências que têm as festas organizadas por nós, de acordo com o nosso parecer. Ora, o Batismo é um dom que se recebe, que se acolhe da parte de Deus por meio da Igreja. Portanto, há certas condições que não dependem simplesmente do nosso querer, mas que representam o nosso compromisso com Deus e com a comunidade eclesial.

Por outro lado, há décadas existe na Igreja um empenho de renovação acerca do modo como este sacramento é visto e administrado em nossas Igrejas. Hoje se faz o esforço da implantação de uma visão mais ampliada, relacionando-o com a Eucaristia e a Confirmação (Crisma), através da assim chamada Iniciação Cristã e, consequentemente, da vida em comunhão na Igreja.

Tudo isso indica uma necessidade de atualização da visão que desenvolvemos da prática desse sacramento com o passar do tempo. É um desafio que se coloca aos ministros da Igreja, mas também a todos os fiéis, tanto os que estão mais próximos, participando com frequência da comunidade eclesial, quanto os que dela só se aproximam esporadicamente, por ocasião da celebração de alguns sacramentos.

Nunca este sacramento pode ser visto como simplesmente o modo de aumentar o número dos fiéis. Como no início do cristianismo, a prática da recepção do Batismo supõe a confirmação de que se quer definitivamente seguir a Jesus Cristo, com o radicalismo que isso supõe de santidade de vida e de compromisso com os irmãos, por amor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB