Um domingo para a Palavra

janeiro 25, 2020 / no comments

Alguém já disse, com muita propriedade, que o cristianismo não é a religião do livro, mas da Palavra. A grande novidade da religião judaica e também do cristianismo é a iniciativa de Deus que procura a humanidade e com ela dialoga no desenrolar de uma história concreta que desemboca em Jesus Cristo. Um diálogo constante de Deus com o seu povo é o que explica a fé cristã. Uma Palavra nos foi dada e a fé é precisamente, responder e apoiar-se naquilo que ela nos comunica, dando sentido a tudo.

Em um mundo caracterizado, entre outras coisas, pela chamada “pós-verdade”, onde a opinião do sujeito tem a pretensão de ser a única verdade, parece provocante falar de uma Palavra que dá sentido a tudo, portadora de verdade e válida para todos e em todos os tempos. E ainda mais provocador é que em Jesus Cristo essa Palavra coincida com uma pessoa, ou seja, com uma testemunha. O próprio Cristo fala de si mesmo como caminho, verdade e vida. Ele é a Palavra definitiva de Deus à humanidade. Nele Deus nos falou tudo o que, de fato, nos interessa para esta vida e para a que há de vir. Esta Palavra, portanto, merece uma atenção maior e uma acolhida mais generosa na vida de cada fiel.

Neste sentido, vem ao nosso encontro a decisão do Papa Francisco de estabelecer que, a partir deste ano, sempre no 3º domingo do Tempo Comum da liturgia da Igreja católica, se dê um destaque à Palavra de Deus, que normalmente já faz parte das celebrações.

Na Carta Apostólica em que se estabelece esta comemoração, lembra Francisco que se trata de um pedido que de muitas partes lhe foi dirigido. É mais uma oportunidade para “compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo”. A celebração tem também um valor ecumênico, pois acontece num momento em que em muitos países se realiza a semana de oração pela unidade dos cristãos, por ocasião da festa da conversão do Apóstolo São Paulo (25 de janeiro).

O dinamismo da Palavra de Deus interpela o ser humano de todos os tempos. Remete à história passada, mas sua força alcança também os nossos contemporâneos. Hoje, ao dar-nos conta, de uma crise de sentido que tem adoecido muita gente, de um caos acerca de valores e interesses que ameaça toda a humanidade, encontramos ainda na Palavra de Deus, quando lida na sua pureza genuína e com o Espírito com que foi escrita, uma senda que abre horizontes cheios de belas e grandes possibilidades.

Os homens e mulheres que ao longo da história se deixaram inspirar por Ela, são as melhores testemunhas de que os mais variados tempos receberam de sua força, respostas para os desafios das várias gerações. A história é testemunha de que no poder suave da Palavra de Deus a humanidade pode encontrar caminhos novos e cheios de esperança para tempos turbulentos.

O Papa Francisco, interessado pelo destino da humanidade, certamente deseja com essa celebração ir além das recordações na liturgia e aprofundamentos dos estudos das Sagradas Escrituras. Há que considerar também a força transformadora dessa Palavra e o compromisso do cristão em anunciá-la. A sua doçura “impele-nos a comunicá-la a quantos encontramos na nossa vida, expressando a certeza da esperança que ela contém” (n. 12). E, como também recorda Francisco na Carta Apostólica, “a Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a estrada da partilha e da solidariedade.” (n. 13).

Seja-nos muito frutuosa a celebração deste domingo inteiramente “dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus”(n. 3).

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB

 

A fraternidade, garantia da paz

janeiro 4, 2020 / no comments

Dentro do contexto das festas natalinas, sempre no 1º dia do ano, o Santo Padre oferece uma mensagem por ocasião da celebração do Dia Mundial da Paz. Esta mensagem é uma reflexão que deve ser continuamente retomada diante dos desafios que o tema da paz tem que enfrentar.

Este ano o tema foi “A paz como caminho de esperança: diálogo, reconciliação e conversão ecológica”. Relacionar paz e esperança é muito conveniente, pois ela “é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis” (n.1).

Nunca é demais recordar que, quando se trata da árdua luta pela paz, se se quer ser coerente, é sempre necessário percorrer vários caminhos. Pode-se dizer que o ponto de partida está no próprio coração. Não seria coerente buscar por todos os meios lícitos alcançar um projeto de paz se no coração da pessoa ela estivesse ameaçada ou ausente. A paz que se quer fora, começa a sua construção dentro de cada pessoa. Mais ainda, é necessário recordar que ela é um dom que vem do alto, que é necessário pedir e também trabalhar para alcançar. Esta é sem dúvida, uma das tarefas que a humanidade inteira precisa assumir como obra coletiva. Ninguém pode eximir-se desse compromisso comum. Também aqui a humanidade deve se saber e se sentir formada por irmãos e irmãs.

Assim, entre os vários elementos da mensagem deste ano, destaco algo que pode ser-nos muito útil dentro da responsabilidade que todos temos. A paz é caminho de reconciliação na comunhão fraterna, afirma o Papa. Aqui se recorda que a Palavra de Deus nos coloca sempre diante de um Deus que fez aliança com a humanidade e, portanto, nos convida a “abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-nos mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos.” (n.3) Este modo novo de ver cada ser humano pode gerar o respeito que é o único caminho “possível para romper a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.” (idem)

Assim, a passagem do Evangelho que reproduz o diálogo entre Pedro e Jesus sobre quantas vezes se deve perdoar (Mt 18, 21-22) é um guia seguro para que aprendamos a viver no perdão, o que “aumenta a nossa capacidade de nos tornarmos mulheres e homens de paz”. Seguindo essa linha de pensamento o Papa diz que “o que é verdade em relação à paz na esfera social, é verdadeiro também no campo político e econômico […] nunca haverá paz verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema econômico mais justo.” E, citando Bento XVI, lembra que “a vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se atue não só sobre a melhoria das transações fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade econômica caraterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão” (n. 3).

A fraternidade, portanto, é o fundamento daquele esforço comum para a promoção da tão necessária cultura da paz. Além disso, o seu fomento está ao nosso alcance no exercício cotidiano da acolhida do outro, da prática do perdão e da busca de meios que favoreçam os mais esquecidos porque vemos neles a presença do mistério de Deus que assumiu o rosto humano sofredor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste. 1 – CNBB