Referências para um ano novo melhor

dezembro 31, 2020 / no comments

Referências para um ano novo melhor

O fim do ano nos motiva a agradecer e também a fazer uma retrospectiva pessoal e social do ano que termina. O passar dos anos nos faz perguntar sobre “quem estou me tornando?”. O modo como respondemos aos acontecimentos revela muito de nós.

O grande psiquiatra austríaco, Viktor Frankl (1905-1997), fundador da terceira escola vienense de psicoterapia, a Logoterapia e a Análise Existencial, depois de ter passado e sobrevivido a quatro campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, testemunhou que dentro dos campos viu homens se transformarem em anjos e outros, em demônios. Tinha clara convicção de que o espaço da liberdade que fica preservado, mesmo nas situações mais extremas. As circunstâncias podem condicionar, mas nunca são determinantes.

Ao findar um ano somos colocados diante de nós mesmos, das pessoas que estão perto de nós e também do momento histórico difícil que nos corresponde viver. Como dizia Ortega y Gasset: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

Responder à pergunta sobre “quem eu estou me tornando diante dos fatos que vivo”, me ajuda a reconhecer que minhas escolhas pessoais não são indiferentes.Elas me fazem e me tornam responsável perante os outros. No entanto, para responder com sinceridade é preciso confrontar-se com alguém, com uma referência.

A referência fundamental da vida é Deus. Um Deus que, em Cristo, se revelou, falou sobre si e sobre o ser humano e se mostrou autêntico, próximo, bondoso e amigo de toda pessoa humana. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes 22, lembra que “Cristo revela o homem ao próprio homem”. Ele viveu nossa vida com seus dramas e se apresentou como caminho, verdade e vida.

Terminando um ano e começando outro buscamos saídas diante das encruzilhadas.Há escolhas equivocadas. Escolher a morte, por exemplo, como no caso da decisão recente do parlamento argentino a favor do aborto, nunca pode dar esperança à humanidade, ao contrário, é presságio de dias piores, pois a resposta violenta é sempre destrutiva e a morte do inocente indefeso é a pior das violências. Para sair da crise antropológica que estamos enfrentando, a referência a Cristo traz luzes sempre novas. As vacinas para o covid19 representam um ponto de luz, mas não podem oferecer solução ao drama da existência humana tão acentuado nestes tempos. Afinal, a vida humana não tem a ver só com saúde física, mas também com relações, sentido, amor, sacrifício, transcendência, Deus, etc.

Para nós cristãos, a fé aponta para Cristo como esperança certa de uma humanidade nova, “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14). Nele somos filhos de Deuse, consequentemente, irmãos uns dos outros. Encontrar Deus, a si e aos outros é determinante para fazer de cada tempo uma nova oportunidade para a humanidade.

As palavras de São Paulo VI, na sua carta comemorativa dos 80 anos da encíclica Rerum Novarum são propositivas: “Convém que cada um se examine para ver o que fez até agora e o que deve ainda fazer. Não basta recordar princípios gerais, manifestar propósitos, condenar as injustiças graves, proferir denúncias com certa audácia profética; tudo isso não terá peso real se não se fizer acompanhar em cada homem de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva. É demasiado fácil lançar sobre os outros a responsabilidade das injustiças presentes, se ao mesmo tempo não se percebe que todos somos igualmente responsáveis, e que, portanto, a primeira das exigências é a conversão pessoal” (Octagesima adveniens, n. 48).

Terminar um ciclo e começar outro representam uma bela oportunidade de revisão do caminho percorrido e de propósitos concretos para a conversão pessoal, tão necessária para uma mudança em nível global. Com a esperança de que o Senhor caminha conosco queremos começar o novo ano e empenhar-nos pessoalmente na construção do mundo sonhado por Deus. Feliz Ano Novo!

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Ainda há espaço para o perdão?

setembro 7, 2020 / no comments

Ainda há espaço para o perdão?

 

Frequentando as redes sociais e sites de notícias fico cada vez mais impressionado pelo teor de alguns comentários que costumam acompanhar as publicações, manifestando a opinião dos leitores.

É verdade que hoje os meios de comunicação permitem uma interação que pode enriquecer os fatos narrados e as opiniões apresentadas, ao mesmo tempo que representam uma oportunidade de se ver a questão a partir de outros pontos de vista.

Acompanhando notícias de todos os tipos, desde as crônicas do dia a dia, passando pelas informações sobre os esportes, a administração pública, o sistema judiciário, a religião, etc., tudo fica exposto ao crivo dos “juízes”, os mais diversos.

O tom de muitas colocações, às vezes, denota a ausência de palavras que lembrem que, entre tantas outras possibilidades de posturas, também existe aquela do perdão. Há muito sabor amargo em tantas exposições e, por isso, me pergunto se na nossa sociedade ainda há espaço para o perdão.

Quando falo de perdão é preciso entender que aqui não se pretende relativizar o valor moral dos equívocos cometidos. A reta razão exige que as coisas sejam valoradas conforme o juízo moral ou ético que lhes correspondem. Lembro-me de um dos meus professores que dizia que era preciso chamar o mal de mal e o bem de bem. As coisas têm em si mesmas um valor que independe imediatamente do sujeito que a valoriza.

Há uma forte presença de uma visão pessimista sobre a realidade que pode gerar muita desesperança ao nosso redor. Em parte, acredito que essa tendência pode provir de um certo esvaziamento de uma visão cristã da realidade. Por outro lado, é verdade também que os discípulos de Jesus, que receberam do Mestre o mandamento novo do amor, nem sempre damos aquele testemunho que corrobora para o bom êxito do anúncio da mensagem. Mas este fato, que faz parte da fragilidade do ser humano, não tira o valor daquilo que Jesus ensinou. No cristianismo se lembra que há sempre a possibilidade de pedir perdão, recomeçar e que a graça de Deus é capaz de restaurar o ser humano a partir de dentro.

Muitas vezes o mal cometido exigirá uma punição que deverá ser cumprida. Mas mesmo assim se faz necessário o perdão tanto para si próprio como para alguém que nos ofendeu. O perdão abre a realidade humana a novas possibilidades, que muitas vezes se apresentam como inesperadas.

Vem-me à memória a imagem de uma visita que, em 1983, o Papa João Paulo II, fez ao autor do atentado que quase o matou em 1981. A aproximação de ambos, a conversa quase ao pé do ouvido entre os dois sentados, um em frente ao outro, parecia descrever um ritual que surpreendeu o mundo. Este mesmo homem, Ali Agca, 31 anos depois do encontro, entrou na Basílica de São Pedro no Vaticano para depositar flores junto do túmulo do Papa que o abraçou e perdoou. Na ocasião ele declarou estar felicíssimo por estar realizando aquele gesto de estima e agradecimento.

A insistência do Papa Francisco pelo fomento de uma cultura do encontro é expressão da necessidade de uma urgente revisão das atitudes que caracterizam tantos relacionamentos em nosso mundo. Os fatos da atualidade parecem sugerir que é hora de se redescobrir o perdão também como fator de reconstrução da história presente. Revisitar o Evangelho sob a ótica do perdão poderá nos ajudar a encontrar caminhos para as encruzilhadas de hoje. A luz não está no fim do túnel. Ela nos rodeia e nos pede abrir espaço dentro do coração que é o lugar por excelência da decisão de perdoar.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.