Fruto de pesquisa com seminaristas no Brasil, artigo faz um retrato da situação da formação presbiteral em tempos de pandemia
O primeiro semestre deste ano de 2020 nos ofereceu um novo desafio: a Pandemia da COVID-19. Podemos dizer que a pandemia está nos fazendo pensar e repensar muitas realidades e, dentre elas, a formação dos futuros padres da Igreja Católica.
Se a formação presbiteral sempre foi um desafio eclesial, temos visto que, no século XXI, tem sido cada vez mais. Para completar, chegou a novidade: como falar de formação sacerdotal, tradicionalmente, vivida quase integralmente, em um Seminário, em tempos de pandemia?
Foi com esse objetivo que a psicóloga Dra. Luciana Campos e o Padre Douglas Alves Fontes, reitor do Seminário São José da Arquidiocese de Niterói decidiram realizar uma pesquisa na buscar por tentar compreender melhor o momento que estamos vivendo, no que diz respeito à formação sacerdotal, no contexto de uma pandemia. Como manter o ritmo da formação neste ambiente? Quais são os desafios? A pandemia interfere muito ou pouco no processo formativo dos futuros padres?
“Neste artigo, recolhemos as respostas que recebemos na pesquisa e nos propomos a refletir sobre a missão formativa em tempos de pandemia. Veremos os desafios da continuidade da formação sacerdotal, em tempos desafiadores para todos. O artigo se apresenta como uma síntese do que refletimos e uma ante-sala do que queremos refletir”, explica a Dra. Luciana. ”Em breve, um novo artigo será publicado, com um viés mais acadêmico. Contudo, achamos por bem publicar esta síntese, antecipando o que falaremos e já apresentando um primeiro fruto da pesquisa! Por isso, de antemão, manifestamos nossa gratidão a todos os seminaristas que se dispuseram a nos responder, aos quais continuamos querendo acompanhar e formar nesse caminho tão significativo. Gratidão a todos os que nos apoiaram, ao longo da aplicação dos questionários!” disse o Padre Douglas.
O religioso conta ainda que a quantidade das respostas foi algo inesperado, “Para nossa surpresa, em pouco mais de duas semanas, recebemos o retorno de 2.000 seminaristas de todo o Brasil, na pesquisa que girou em torno da vida deles, no contexto da pandemia. Tocava em diversos pontos: disciplina, vida de oração, vocação, alimentação, luto, estudos, relações…”
Dra. Luciana nos conta ainda, que o questionário “teve um retorno de respostas com percentual muito significativo que, talvez compreenda perto de 50% dos seminaristas do Brasil”. E detalha que, “dos que responderam, a maior parte veio dos formandos para o clero diocesano (92,1%), residentes nas regiões Sudeste (38,9%), Nordeste (30,2%), Sul(15,9%) e Centro-oeste (8%) do país. O maior grupo faz parte da etapa do discipulado (42,8%), seguindo-se os da etapa da configuração (34,9%) e do propedêutico (20%)”.
Confira abaixo na íntegra o artigo A Formação Sacerdotal e a Pandemia
A Formação Sacerdotal e a Pandemia
“Olhando para o futuro, vamos ler os sinais que a COVID-19 exibiu claramente. Não esqueçamos o quanto a perda do contato humano durante este tempo nos tenha empobrecido profundamente, quando fomos separados dos vizinhos, dos amigos, colegas de trabalho e especialmente da família, incluindo a crueldade total de não podermos acompanhar os moribundos nos seus últimos momentos de vida e depois chorá-los devidamente. Não consideremos óbvio o fato de podermos retomar a convivência no futuro mas redescubramo-la e encontremos formas de fortalecer agora esta possibilidade”. (p.15)
Papa Francisco
por Dra. Luciana Campos* e Pe. Douglas Alves Fontes**
Um novo ambiente formativo
“Foi então a Nazaré, onde se tinha criado.” (Lc 4,16)
Um dos primeiros desafios, que a pandemia nos apresentou, foi: permanecer com os seminaristas no Seminário ou enviá-los para outro lugar? Este desafio, provavelmente, foi exigente para todos: formandos, formadores e familiares. Na pesquisa, vimos que a maioria foi para a casa de suas famílias (62,2%), e um segundo grande grupo permaneceu nos Seminários (25,6%). O restante se dividiu entre casas paroquiais, conventos, e alternando casa e seminário.
O Documento de Aparecida (n. 314), há mais de 10 anos, nos recorda que a Pastoral vocacional começa na família. Contudo, sabemos que esta realidade não é tão simples como podemos pensar. Muitas famílias, de fato, se envolvem no processo formativo dos seminaristas, às vezes até de maneira delicada.
A Igreja sempre enfatizou a necessidade de uma participação ativa das famílias no processo formativo dos futuros presbíteros. Já João Paulo II, na Pastores DaboVobis (n. 41), reconhecia a importância da família, na acolhida e formação das vocações. Ela é considerada a primeira comunidade eclesial de formação dos vocacionados (Doc. 110, n. 88). É fato que muitas das experiências familiares, vividas no seio da família, poderão influenciar demais a caminhada vocacional dos futuros presbíteros.
Retomando a AmorisLaetitia, a Ratiofundamentalis(n. 148) recorda que “os laços familiares são fundamentais para fortificar a autoestima sadia dos seminaristas. Por isso, é importante que as famílias acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a revigorá-lo de forma realista.”
Não obstante, os formandos precisam ser educados para uma experiência de liberdade que favoreça uma “justa autonomia no exercício do ministério, e um sadio distanciamento em face de eventuais expectativas da respectiva família.” (Ratio, 148) O formando é chamado a não esquecer sua origem, mas, ao mesmo tempo, a fazer um caminho de independência.
Para os seminaristas que ficaram no Seminário, sem dúvida, a pandemia favoreceu um novo estilo de vida comunitária. Relações mais próximas, uma rotina mais flexível, um ritmo de atividades mais sereno, e outras características, são possíveis nessa nova vivência de Seminário, no tempo da pandemia. Provavelmente, a relação dos seminaristas entre eles, e com os formadores, pode estar sendo bem vivida.
O próprio autoconhecimento também pode ter sido uma conquista desse tempo. Talvez, nessa nova vivência comunitária, formadores e formandos puderam olhar-se e relacionar-se, de modo diverso do cotidiano a que estávamos acostumados, antes da pandemia. Provavelmente, a pandemia deu um tempero novo à vida comunitária, mas deu também oportunidade de viver na comunidade de uma maneira diferente, privilegiando o que é mais importante e necessário.
Diferentemente do que muitos poderiam pensar, os seminaristas que responderam ao questionário,em sua maioria, disseram que conseguiram ter privacidade dentro da própria família (71%). Este dado pode dizer algo sobre a necessária independência do formando em relação a sua família.
Porém, estando em casa, outro desafio possível seria o enfrentamento dos conflitos familiares. 42,6% responderam que tiveram que enfrentá-los. Por um lado, foi apenas uma troca: os conflitos no Seminário foram suspensos e chegaram os familiares. Neste sentido, podemos questionar: os conflitos familiares foram causados pelos próprios seminaristas ou, talvez, eles tenham sido os mediadores desses conflitos? Essa experiência é de suma riqueza, para o processo formativo, porque permite que os seminaristas sejam “colocados à prova” para lidar com essas realidades que os tocam de maneira significativa. Ao mesmo tempo, lhes dá a possibilidade de conhecer sua família de maneira mais profunda e real.
Um bom formando nunca pode se esquecer da sua origem, da sua raiz familiar. Contudo, infelizmente, sabemos que muitos optam por virar uma página, de tal maneira que parece que “caíram do céu” e chegaram ao Seminário. Vergonha? Medo? Raiva? Por tantos motivos, muitos seminaristas ignoram ou tentam ignorar sua família. Aqui, caberá sempre um olhar atento dos formadores, para perceber quando esse fato está ocorrendo e ajudar o formando a se perceber como membro daquele núcleo familiar, e auxiliá-lo a lidar com essa dificuldade, em relação a sua família.
Um seminarista que não fala de sua família, não a visita, prefere passar férias em outros lugares e não com a família, evita a vinda desta ao Seminário, precisa do auxílio atento e delicado dos formadores, para seu bem, hoje no Seminário e, amanhã, no presbitério. Neste caso, voltar para casa na pandemia, pode ter sido um desafio para muitos, mas, para todos, foi uma oportunidade de encontro com sua história e com os seus.
Se para muitos de nós, a pandemia favoreceu um estado de elevação da ansiedade, a maioria dos seminaristas respondeu que seu estado emocional, nesse momento de pandemia, está normal (41,9%). Não obstante, um outro grupo se percebeu levemente ansioso (33%), e (8,1%) muito ansioso. Poderíamos dizer que muitos conseguiram e estão conseguindo lidar bem com suas emoções, neste momento. Mas e os que não o estão? “Perderam” muitos dos auxílios ordinários da vida de Seminário. Não é um número pequeno e inexpressivo, aquele que apresenta um quadro de ansiedade. Por isso, talvez, a alimentação tenha sido uma das válvulas de escape. Ao mesmo tempo em que (41,8%) responderam que a alimentação está boa, outros (11,3%) destacaram que ela está exagerada.
Na entrevista, (35,7%) dos rapazes responderam que sentiam o peso da solidão. A maioria (64,3%) afirmou que não sentia. Poderíamos elencar inúmeros motivos,pelos quais os seminaristas não sentiam o peso da solidão. Porém, podemos também nos perguntar: não sentiram ou não se davam o direito de sentir? É fato que um dos nossos desafios é perceber e lidar com os nossos sentimentos.
Ao mesmo tempo, os que estavam sentindo o peso, nos fazem pensar em duas questões centrais: como estão as relações pessoais dos seminaristas? Tendo em vista que estão, na maioria, com suas famílias, como sentir o peso da solidão? Estão sabendo conviver com os seus e com os outros? Além disso, outra questão central precisa ser colocada: tendo em vista que a maioria dos que responderam ao nosso questionário, foi dos seminários diocesanos, como estão lidando com a experiência do estar/viver sozinho? Sabemos que uma característica do clero diocesano é uma vida bem diversa da vida dos religiosos que vivem em comunidade. Talvez, essa resposta nos faça pensar em um dos desafios enfrentados pelos diocesanos, que têm uma vida mais “solitária”.
Outro dado interessante, mas não novo, diz respeito ao uso das redes sociais. Hoje, mais do que nunca, não nos é possível falar de formação sacerdotal, desconsiderando esse dado. Se antes da pandemia o uso das redes sociais estava na pauta de cada dia, o tempo da pandemia nos colocou diante de um desafio que não podemos mais deixar de lado, porque faz e fará parte da vida formativa antes, durante e depois do Seminário. Não podemos desconsiderar que estamos no século XXI, nossos formandos, em sua maioria, nasceram neste século, e todos exercerão o ministério neste século.
A entrevista revelou que (36,7%) dos seminaristas estavam usando a internet para redes sociais. Estas são o pão nosso de cada dia, na caminhada formativa. Contudo, ao mesmo tempo em que ela se torna um necessário instrumento de evangelização, e assim deve ser, tem se tornado o palco de muitos conflitos e muitas questões formativas que, talvez, não apareçam na vida ordinária e real, mas ficam gritantes no mundo virtual.
Acompanhamos não só os seminaristas, mas tantos padres e leigos redescobrindo as redes sociais, neste tempo de pandemia. Contudo, sem desmerecer e desconsiderar a busca por novas amizades, e um empenho sincero para um profícuo apostolado, até que ponto essa busca desenfreada por “estar nas redes” não está nos dizendo muito sobre nossos candidatos ao presbiterado?
Da mesma forma que constatamos uma busca significativa dos jovens, pelas redes sociais, os seminaristas, em sua maioria, não fariam diferente. Infelizmente, precisamos constatar que essas buscas, muitas vezes, estão em desacordo com a vida “real” deles. Além disso, é comum criar um mundo virtual que não seja condizente com o real. É possível também reconhecer a busca de seguidores, curtidas e compartilhamentos dos formandos, quase como se fossem novos artistas e/ou youtubers. Mas esse seria o papel de um sacerdote e/ou futuro sacerdote, nas redes sociais e na internet, em geral?
As inúmeras lives que aparecem em todo canto e ao longo do dia podem, no fundo, ser uma possível revelação de pessoas que não estão lidando bem com a solidão. Revestem o meio e o acesso com ótimas intenções, mas escondem o verdadeiro sentido da busca: afeto. No fundo, o que vemos e constatamos é um desejo ardente de afeto e de reconhecimento. Tendo em vista que, no mundo virtual, aparece o que queremos, muitos dos nossos formandos podem viver uma certa esquizofrenia formativa. Caberá aos envolvidos na formação um olhar atento e um acompanhamento cuidadoso, para fomentar o autoconhecimento dos formandos e um verdadeiro amadurecimento da liberdade e da responsabilidade.
Todos esses dados nos fazem refletir e questionar o processo formativo! Por isso, é preciso pensar e repensar a formação, sobretudo, atentos aos sinais dos tempos!
Formação continuada fora do Seminário
“Jesus desceu, então, com seus pais para Nazaré… E Jesus ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens.”(Lc 2,51s)
Comecemos refletindo sobre como as diferentes dimensões da formação sacerdotal – humano-afetiva, espiritual, comunitária e intelectual – foram trabalhadas neste período.
Um aspecto importante, indicado nos questionários, refere-se a este momento de profunda introspecção, propiciado pelo confinamento, e a questão vocacional. (67,2%) dos rapazes admitiram que repensaram sua vocação, neste período. O que isto significa? Poderemos contemplar este dado como uma fragilidade vocacional, ou como percurso natural, diante de um tempo apartado do cotidiano formativo no interior do Seminário? E teria este quesito ligação com a qualidade da relação com Deus, apontada como ótima, por um quantitativo de apenas (16,4%)? Como o diretor espiritual poderia estar mediando este momento desafiador para os seminaristas? Apenas (30,8%) dos rapazes continuaram contando com o acompanhamento espiritual online, ao passo que (69,2%) ficaram sem esta possibilidade, ressaltando que este é um percentual muito próximo dos que admitiram questionar sua vocação. Estes dados possuem potencial para nos arguir sobre o quanto a mediação de um sacerdote experiente pode impactar um jovem formando em sua caminhada. Talvez, forçosamente, nos perguntemos se antes mesmo da pandemia este acompanhamento ocorria com a frequência e a efetividade necessárias. Por outro lado, quando indagados sobre a presença dos formadores neste período, as respostas são mais animadoras, pois a maioria dos rapazes (89%) foram contatados pelos formadores, para interação social (25,6%) e também para a continuidade do trabalho formativo (74,4%).
É preciso reconhecer que as dificuldades na vida de um vocacionado ao sacerdócio não se resumem ao tempo do Seminário, uma vez queantes, durante e depois, os vocacionados ao presbiterado lidam com inúmeros desafios e dificuldades. Vale lembrar que outras vocações também têm as suas. Porém, a resposta sobre o repensar a vocação também nos faz pensar até que ponto, os seminaristas têm raízes firmes e um alicerce sólido, sobre os quais “edificarão” seus ministérios. De fato, a pandemia é algo totalmente novo e questionador, mas outros desafios ainda virão.
É sempre necessário auxiliar os vocacionados a terem, cada vez mais claro, o motivo pelo qual deixaram suas famílias, ingressaram no Seminário, nele permanecem e dele partirão, para seguir outro caminho ou assumir o ministério sacerdotal. Muitas vezes, o que ocorre é que as motivações vocacionais são superficiais, ilusórias e inconstantes. Contudo, é sempre possível depurar, para chegar no seu essencial, no seu núcleo sólido, mesmo que tantas camadas apareçam cobrindo o núcleo central do chamado vocacional. Caberá, aos formadores, oferecer um auxílio constante e sereno, para que os formandos façam o seu caminho de discernimento!
Já o dado da direção espiritual parece fazer ecoar um dado percebido na vida presbiteral. Infelizmente, é perceptível um hiato, entre a rotina da direção espiritual e a vida sacerdotal. Sem querer minimizar os desafios da pandemia, essa resposta dos seminaristas não estará apontando para o que vemos no presbitério e continuaremos a ver? Por outro lado, o valor da direção espiritual talvez não esteja ainda internalizado e assumido pelos formandos. O que acontece durante a pandemia pode ser o mesmo que acontece no período de férias: a direção espiritual fica em segundo plano.
Francisco Fernandez Carvajal,em sua pequena e profunda obra, A quem pedir conselho?, começa a redação com um provérbio africano, que diz: “Ninguém é juiz em causa própria”. Os formandos precisam aprender o valor do abrir o coração, com sinceridade, a um irmão mais velho, no mesmo caminho discipular. Às vezes, a direção será um falar diante do espelho, fazer ecoar o que está dentro de si. Desta maneira, muitas questões vão se apaziguando. Quando um jovem formando deixa a direção, vai permitindo que suas questões cresçam dentro dele e podem, futuramente, causar sérios danos. Contudo, se ele tivesse aberto o coração, na direção, estaria se preservando de tantos problemas futuros. O que acontece é que a direção esquecida será retomada, quando a coisa estiver complicada. Aí, talvez, já seja tarde demais! Dizia um velho e sábio diretor espiritual: “mesmo quando você não tiver nada a dizer na direção, venha, porque eu tenho.”
Ao serem questionados sobre as maiores dificuldades, neste momento, as respostas são bem difusas e plurais: dificuldades para manter a rotina de orações (32,5%) aparecem seguidas de dificuldades pela falta de contatos sociais (22,1%), de manutenção da castidade (11,1%), por falta de direção espiritual (10,5%), dificuldades de assistir à missa online (7%), entre outros fatores. Outro desafio no momento, refere-se à perda de entes queridos: (14,6%) perderam algum ente próximo e deste quantitativo, (31,9%) vêm demonstrando dificuldades em elaborar o luto.
Sobre o luto, sabemos o quão desafiador é lidar com ele. Porém, é importante que os seminaristas aprendam cada vez mais a lidar com essa experiência, porque será uma constante na vida ministerial. Não só o próprio seminarista, e o futuro presbítero lidam, com frequência com o luto, mas precisarão auxiliar muitos a lidar com essa experiência. Neste contexto, se faz necessário iluminar o luto com a luz da fé. O presbítero é aquele que se alegra com os que se alegram, e chora com os que choram (Rm 12,14s), muitas vezes, no mesmo dia.
Em relação à rotina das orações, elencada como a maior dificuldade, pode ser a mesma experiência vivida por muitos, nos períodos de férias. É claro que manter uma rotina espiritual dentro de uma casa, com uma família que talvez não valorize tanto o que está tentando ser mantido, é sempre um desafio. Porém, a ausência da estrutura do Seminário pode também revelar uma vida espiritual de fachada, que não se mantém sem a comunidade, sem o sino, a capela e, sobretudo, sem os formadores. Tudo isso precisa ser refletido, para que os formandos reconheçam a importância e a necessidade de uma vida espiritual sólida, disciplinada e bem vivida, como uma realidade necessária para a vida vocacional e não tanto como um dever que parecerá mera obrigação.
Como itens positivos, propiciados pelo momento, destacam-se a possibilidade de aproveitar o contato estreito com a família (29,4%), a descoberta de novas habilidades (23%), o aumento da espiritualidade (22,4%) e da qualidade dos estudos (12,7%), como principais ganhos.
Aqui, percebemos dados importantíssimos! Como essa “redescoberta”das famílias pode ser muito produtiva. É a volta às origens, e um contato próximo e real daqueles que são responsáveis pela existência de todo vocacionado. Este contato facilita a humanização do futuro presbítero, que lidará com as famílias e suas questões, ao longo de todo o seu ministério sacerdotal. O contato estreito com a família, nestes meses, também pode ter possibilitado um conhecimento mais profundo sobre si mesmo.
Da mesma maneira, a oportunidade de descobrir novas habilidades mostra o quanto todos nós precisamos nos reinventar. Como Igreja, esse é sempre um desafio que toca no exercício da nossa missão. É não se contentar com a formação inicial e reconhecer a formação permanente como necessidade para o bom e frutuoso desempenho do ministério sacerdotal, no meio de um mundo que se transforma da noite para o dia. O formando, que já se fecha a essas mudanças, está fadado a viver seu ministério em uma bolha, que ele próprio está construindo e que estourará quando menos pensar.
Se a dimensão espiritual e humano-afetiva ganhou novos contornos, como será que a dimensão intelectual caminhou nestes tempos? Esta tem sido parte da pauta da mídia, sobre como os sistemas educacionais tiveram, rapidamente, que dar uma resposta de ensino a distância (EAD), sem o devido preparo e muitas vezes, sem condição, por parte dos estudantes, de corresponderem às novas demandas educativas, pois ainda que o professor tenha meios de oferecer seu curso, o estudante, muitas vezes, não conta com os equipamentos físicos necessários, nem com conexões, tampouco com espaço adequado para a realização das atividades.
A maior parte dos seminaristas brasileiros relataram que deram continuidade aos seus estudos, neste período, de modo remoto (86,7%), contrastando com um número menor que não tiveram oportunidade de fazê-lo (13,3%). A qualidade desta nova modalidade de ensino foi considerada ótima, por um pequeno grupo (12,1%), boa, por (38,7%), mediana, para (36,6%) e, finalmente, avaliada como ruim, por (12,6%) dos rapazes. Um dado importante é sobre a percepção de que há uma atuação sistemática, por parte da coordenação pedagógica, em seus institutos formativos. Neste quesito, (41,4%) têm a percepção de organicidade pedagógica dando corpo ao processo formativo, enquanto (32,4%) sentem falta da mesma, o que propicia,a cada professor,funcionar de modo independente e desarticulado. (13,1%) dos rapazes foi contatado pela parte pedagógica do Seminário, para verificar se possuíam os meios de realizar as aulas, enquanto o mesmo percentual (13, 1%) relatou que não houve nenhum contato e verificação neste sentido. No tocante aos procedimentos avaliativos remotos, a maior parte (43,3%) disse que tais procedimentos foram encaminhados de modo independente pelos professores,ocorreram de modo padronizado em plataforma específica (24,9%),e não fizeram avaliações (20,2%).
Diante de tudo isso, vale ressaltar que a RatioFundamentalis, no capítulo VI, fala dos agentes da formação: o bispo diocesano, o presbitério, os seminaristas, a comunidade dos formadores, os professores e os especialistas. A Igreja quer destacar a importância de todos se envolverem no processo formativo do futuro clero. Em tempo de pandemia, esse dado é mais do que nunca ressaltado. Os desafios enfrentados no processo formativo nos fazem pensar na necessidade de um trabalho, verdadeiramente, eclesial e colegiado, de tal maneira que o resultado possa ser muito mais proveitoso. É sempre um erro constante restringir a missão de formar aos presbíteros residentes no Seminário. Estes não são os únicos responsáveis pela formação do futuro clero!
Na pesquisa que realizamos, ao mesmo tempo em que (72,6%) responderam que não estavam fazendo qualquer acompanhamento, (21,7%) estavam fazendo acompanhamento: psicológico, nutricional, psiquiátrico e fonoaudiológico. Essa constatação nos mostra a riqueza de um processo formativo interdisciplinar, como a Ratio nos propõe (n. 145). Tudo isso também nos aponta para outro dado, que temos encontrado cada vez com mais claridade: a situação dos nossos formandos do século XXI, que exige um cuidado ampliado e profundo, por parte dos envolvidos na missão de formar os futuros presbíteros.
Um último dado que podemos destacar da pesquisa é o que diz respeito às relações. O presbítero é um homem de relações a exemplo do próprio Jesus,ao qual ele será configurado, não através de um passe de mágica, mas através de uma formação séria e profunda. A exemplo do Mestre, o presbítero sabe que sua vida é marcada por uma tríplice relação: consigo, com Deus e com os outros. Nem sempre a vivência dessa dinâmica relacional é tão simples e, por isso, bem vivida. Os formandos precisam investir nesse campo central da vocação sacerdotal.
Dos seminaristas participantes, (53,5%) responderam que se sentiam bem, na relação com eles mesmos, enquanto (30,6)% disseram que se sentiam regulares, nessa relação. (8,2%) disseram que essa relação estava ruim. Já na relação com Deus, (43,7%) responderam que estavam vivendo uma boa relação,enquanto (32,1%) disseram que era uma relação regular. Na relação social, (45,9%) disseram que viviam uma boa relação e (36,4%) viviam uma relação regular.
Tudo isso nos faz pensar e reconhecer o presbítero e, por isso, os candidatos ao presbiterado como homens de relação. Contudo, essa dinâmica relacional na vida presbiteral precisa partir de uma relação profunda e verdadeira, consigo e com Deus, para que as relações com os outros sejam maduras e responsáveis. Além disso, os formandos e, sobretudo, os presbíteros, precisam ter consciência da necessidade de uma reserva nas relações, de tal maneira que a relação consigo e com Deus seja preservada e bem vivida. A pandemia pode, também, nos fazer pensar esse quadro de relações que, para muitos, é um desafio, por não ter contato direto com o povo. Porém, essa ausência é importante e necessária, para os presbíteros e, por isso, para os seminaristas.
Luzes para o pós-pandemia
“Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28)
Todos nós já vimos imagens de flores nascidas em cenários bem curiosos: pedras, troncos cortados, paredes… Cenários onde todos defenderiam o fim da vida e, por isso, o fim da esperança. Contudo, a vida continua desabrochando e nos convidando a acreditar e esperar. A pandemia pede de nós a superação de um otimismo utópico, ou um realismo pessimista, para darmos lugar a um realismo esperançoso. O contexto da pandemia nos motiva a reconhecer que todos podemos sair melhores dessa experiência, que afetou toda a humanidade. A formação sacerdotal não pode estar fora desse palco!
Ao concluirmos este percurso que fizemos, a partir da pesquisa, com 2000 seminaristas do Brasil, queremos destacar algumas luzes que a pandemia nos convida a enxergar e assumir, na continuidade da nossa história como homens e mulheres de fé!
A primeira luz que encontramos é uma experiência de maturidade, que a pandemia está nos pedindo. Um contexto, como este, pede presbíteros maduros e, por consequência, formandos que se empenham por uma maturidade humana e também espiritual. O Doc. 110 (n. 173) nos lembra que o cultivo da vida comunitária faz com que o formando alcance alguns objetivos, dentre eles, “definir-se como cristão adulto, purificando-se nas motivações e transformando a própria conduta, com vista a uma progressiva configuração a Cristo.”
Outra luz que a pandemia está nos oferecendo, sobretudo aos formandos, é a possibilidade de uma relação mais profunda conosco, favorecendo o autoconhecimento, de tal maneira que o formando alcance “um satisfatório conhecimento das próprias fraquezas, sempre presentes em sua personalidade, tendo em vista a capacidade de autodeterminação e de uma vivência responsável.” (Doc. 110, n. 190b) Contudo, isso só será possível se os formandos superarem a tentação de uma vida exibicionista, que tende ao exterior, à aparência e pouco ao interior.
Neste mesmo caminho, a pandemia ofereceu a todos e, particularmente, aos nossos formandos, um contato muito próximo das famílias. Principalmente, isso ocorreu, como vimos na entrevista, porque a maioria dos seminaristas está passando a pandemia nas casas de suas famílias. Este contato pode ter sido muito proveitoso, para que os formandos consigam “relacionar-se, com sinceridade, com a própria família, sem apegos e dependências, nem rejeições e descompromissos, e sem perder as raízes sociais e culturais.” (Doc. 110, 190g)
Ao mesmo tempo em que descobrimos um novo mundo virtual, com a pandemia, muitos podem ter se refugiado nesse mesmo mundo. Para o formando, é sempre importante uma consciência clara sobre si mesmo e sua vocação, para que não se perca no mundo virtual. Uma postura equilibrada pedirá, a cada formando, uma presença evangélica nas redes sociais, e não uma presença como mais um refém do mundo virtual, em detrimento do real. Da mesma forma, os formandos também são chamados a não se omitir nesse novo campo de evangelização, que se descortina diante de nossos olhos. Por isso, é preciso “educar-se no uso adequado e responsável das novas tecnologias e dos meios modernos de comunicação e entretenimento.” (Doc. 110, n. 190p)
A pandemia exigiu de todos uma redescoberta e valorização da vida espiritual. Ouvimos tantas pessoas destacando a importância dessa dimensão da vida, para que pudessem viver um pouco melhor esse momento. Para os seminaristas, a pandemia pediu e proporcionou um processo de crescimento espiritual. Contudo, este crescimento só é possível, através de um sincero e permanente esforço de conversão do coração. Ao mesmo tempo, só uma disciplina responsável possibilitará uma vivência profundamente espiritual, mesmo em tempos de crise, como o atual (Doc. 110, n. 211).
O mundo em que estamos pede, cada vez mais, que o presbítero seja perito nas coisas humanas e divinas (Doc. 110, n. 288). A pandemia pediu um constante adaptar-se em inúmeros campos, dentre eles o campo dos estudos. Uma formação intelectual sólida e adequada, para que o futuro presbítero seja capaz de ser um formador de consciência, como pedia Aparecida. Esse novo ambiente mostrou, aos formandos, a necessidade de uma disciplina e um empenho cada vez mais pessoal, para se dedicar com seriedade e profundamente aos estudos.
Todo esse contexto que estamos vendo nos faz pensar que, de fato, toda formação sacerdotal precisa ter claro o destino pastoral do futuro presbítero. Dessa maneira, a pandemia nos colocou diante dos grandes areópagos, para os quais os futuros presbíteros serão enviados. Assim, esse tempo pode proporcionar, aos formandos, novo ardor, novos métodos e novas expressões (Doc. 110, pn. 229)
Por último, podemos pontuar que a pandemia nos fez recordar que “a missão do Seminário é formar presbíteros capazes de dialogar com a realidade plural e atuar, pastoralmente, no meio do povo, valorizando os leigos e leigas em seus diversos carismas, serviços e ministérios.” Só assim os formandos poderão conhecer bem a realidade para assumi-la e transformá-la à luz do Evangelho. (Doc. 110, n. 7)
Que esse tempo seja, para todos nós, a oportunidade de nos reinventarmos à luz da presença amorosa de Deus, para sermos capazes de nos tornar sinais credíveis da Sua presença no meio do Seu povo, que é confiado a nós!
Que a pandemia nos cure de tantas doenças que nos impedem de vivermos nossa missão eclesial no coração do mundo! Que assim nos empenhemos, com muito mais ardor, para que a formação sacerdotal possa gerar novos e bons presbíteros, verdadeiros homens de Deus, capazes de se compadecer do nosso povo e ter a consciência de serem servidores à luz do Mestre, que veio para servir e não ser servido (Mt 20,28)!
Que o pós-pandemia não nos encontre como se nada tivesse acontecido; não permita que continuemos da mesma forma, mas nos empenhemos para ser melhores, criativos, valorizando as coisas essenciais, enraizando-nos cada vez mais n’Aquele que nos chamou, nos formou e nos envia à missão! Todo esse caminho só será possível se corrermos, no certame que nos é proposto, “tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé.”(Hb 12,2)
“‘Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?’ O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre jamais.”
(Homilia do Papa Francisco, Praça de S. Pedro, 27/03/2020)
“Como padres, filhos e membros de um povo sacerdotal, temos que assumir a responsabilidade pelo futuro e projetá-lo como irmãos. Coloquemos nas mãos feridas do Senhor, como uma oferta sagrada, nossa própria fragilidade, a fragilidade de nosso povo, e de toda a humanidade. O Senhor é quem nos transforma, que nos trata como pão, leva a vida nas mãos d’Ele, nos abençoa, nos quebra e nos compartilha, e nos dá ao seu povo.”
(Carta do Papa Francisco aos sacerdotes da Diocese de Roma, 31/05/2020)
* Dra. Luciana Campos é psicóloga pela UFRJ, pedagoga pela UFF, especializada em psicopedagogia pela UFRJ, mestre em educação pela UFF, doutora pela UFRJ. (luciana.campos360@gmail.com)
* Padre Douglas Alves Fontes é Reitor do Seminário São José da Arquidiocese de Niterói (RJ), mestre e doutor em Teologia Sistemática pela PUC Rio. (douglasafontes@yahoo.com.br)
Referências bibliográficas:
CNBB. Diretrizes para a formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil. Doc. 110. Brasília: Edições CNBB, 2019.
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. RatioFundamentalisInstitutionisSacerdotalis. Brasília: Edições CNBB,2016.
FERNANDEZ-CARVAJAL, Francisco. A quem pedir conselho?. São Paulo: Quadrante, 2000.
FRANCISCO, PP. Vida após a Pandemia. Roma: LibreriaEditrice Vaticana, 2020.
–––––. AmorisLaetitia. São Paulo: Paulinas, 2016.
–––––. Carta del Santo Padre Francisco a los sacerdotes de laDiócesis de Roma.31/05/2020.Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/es/letters/2020/documents/papa-francesco_20200531_lettera-sacerdoti.html. Tradução nossa. Acesso em 05/06/2020.
–––––.Momento Extraordinário de Oração, em tempo de epidemia, presidido pelo Papa Francisco. Adro da Basílica de São Pedro, Sexta-feira, 27 de março de 2020.Disponívelem:http://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papafrancesco_20200327_omelia-epidemia.html. Tradução nossa. Acesso em 05/06/2020.