Rezar pelos mortos

novembro 3, 2019 / no comments

            Em um único dia, no 2 de novembro, a Igreja quis reunir a recordação de todos os fiéis falecidos para oferecer por eles mais abundantes sufrágios e, ao mesmo tempo, recordar-nos o sentido da vida humana à luz do nosso destino último que é a vida eterna e não a morte.

A liturgia da Igreja apresenta de forma bela a visão cristã sobre a morte: “Senhor, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio dos defuntos). Para aqueles que se apoiam na fé em Cristo a morte se revela como a posse definitiva de uma vida interminável e eterna. Ela é  o fim da “viagem” do ser humano na terra e lhe franqueia o porto seguro da eternidade. Com ela acaba o único curso de nossa vida terrestre, pois “não voltaremos mais a outras vidas terrestres: ‘os homens devem morrer uma só vez’(Hb9,27)”, assim afirma a fé dos cristãos, conforme o Catecismo da Igreja Católica (Cat. 1013). Desse modo, o cristão sabe que essa vida é a única oportunidade que se lhe oferece para ganhar ou perder a vida em plenitude. Isso significa que a vida deve ser encarada com a responsabilidade de quem sabe que vai viver apenas uma vez e que sua vida aqui na terra ganhará pleno sentido de acordo com o modo como se encaram todas as realidades vividas. Nesse sentido, é bem verdadeira o pedido do salmista: “Ensina-nos, Senhor, a bem contar os nossos dias” (Sl 89, 12).

Ao mesmo tempo, a fé católica, apoiada em textos da Sagrada Escritura e no testemunho da Tradição, afirma a existência de um estado de purificação, chamado purgatório,  para aqueles que “morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na glória do céu” (Cat.1030). A Escritura, de fato, fala implicitamente da existência de um estado de purificação após a morte. No segundo livro dos Macabeus (2Mac 12,42-46), os judeus oram pelos que morreram num combate, oferecendo sacrifícios expiatórios pelos mortos para que fossem absolvidos dos seus pecados, considerando ser que era “um pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam perdoados de seus pecados” (2Mac 12,46). O próprio Cristo fala de um tipo de pecado que, pela sua gravidade, não será perdoado neste mundo nem no vindouro(Mt12,32), aludindo assim quanto à possibilidade de purificação de outros pecados após a morte.

O purgatório, portanto, é um estado de purificaçãoe não de castigo. Na verdade, a própria pessoa ao tomar consciência do quanto foi amada por Deus e do pouco que correspondeu a esse amor, deseja purificar-se. Santa Catarina de Gênova diz algo que ajuda a compreender muito bem esse desejo de purificação que se experimenta diante da visão de Deus: “O céu não tem portas, e quem quiser entrar pode fazê-lo, porque Deus é todo misericórdia e permanece com os braços abertos para admiti-lo na sua glória. No entanto, o ser de Deus é tão puro que a alma justa, ao sair do seu corpo, vendo em si mesma alguma coisa que turva a sua inocência primitiva e se opõe à sua união com Ele, experimenta uma aflição incomparável; e como sabe muito bem que esse impedimento não pode ser destruído senão pelo fogo do purgatório, desce até lá imediatamente e com plena vontade[…]. Sabendo que o purgatório é o banho destinado a lavar essa espécie de manchas, corre para lá […], pensando muito menos nas dores que a esperam do que na alegria de reencontrar ali a sua primitiva pureza” (Tratado do purgatório, n.12).

Rezar pelos mortos é um gesto de solidariedade para com os que partiram. Os fiéis podem participar da purificação desses irmãos e irmãs, oferecendo a Deus a oração, os méritos das boas obras e o santo sacrifício da missa. No dia de finados, a memória supera a saudade e se transforma em união através da oração.

 

Artigo de dom Gilson Andrade da Silva, Bispo de Nova Iguaçu