Um livro para tempos de crise
As crises de diversos tipos acompanham a humanidade ao longo de toda a história conhecida. Em nível pessoal cada ser humano faz a experiência de atravessar momentos críticos com o passar dos anos. Gosto de lembrar que a palavra crise, oriunda do grego, na sua etimologia tem um caráter positivo. Ela se refere a critério, juízo, decisão. Toda crise revela fragilidades e pede decisões a partir de referências que podem iluminar as escolhas.
O Deuteronômio, um dos Livros Sagrados do Antigo Testamento, foi escrito precisamente num momento importante da história de Israel, onde Deus, na sua bondade, como guia do povo, recorda, através de Moisés, as grandes referências que Israel tinha para continuar com êxito sua trajetória histórica como nação escolhida, povo eleito.
O contexto em que se situa este livro bíblico é o do final da travessia do deserto, após a saída do Egito, no processo de libertação de Israel. Muitos dos que presenciaram o início da longa viagem e viram as maravilhas de Deus no Sinai já haviam morrido. Uma nova geração surgira e terá que ocupar a terra prometida, com os desafios que isso suporá, mas o desafio maior é o de não perder o sentido da história do povo e das consequências da escolha que Deus fizera dele.
Nesta situação nova faz-se necessário oferecer de novo as bases que fizeram deste povo uma nação (Deuteronômio literalmente significa “segunda Lei”). Israel, como nação, não podia compreender-se fora da relação com Deus e da Aliança firmada no Sinai. Nela, Deus e o povo haviam feito um pacto: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. Por isso, as palavras centrais do livro são aquelas do capítulo 6º: “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor! Portanto, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.” (Dt 6,4-5).
Deus tinha dado provas do seu amor pelos hebreus e, através dos Mandamentos, eles demonstrariam sua gratidão e fidelidade Àquele que se interessou por eles e os tirou das mãos do prepotente. Esta experiência marcará para sempre a história de Israel e também o seu estilo de relações com o próprio Deus, com o próximo e com a criação.
Seguir os caminhos de Deus significa escolher a vida: “ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a ele.” (Dt 30, 19-20). Portanto, é dentro da perspectiva da experiência fundante que Israel teve com Deus que se pautará também a própria vida em sociedade, reconhecendo no semelhante a sua dignidade de escolhido e amado por Deus.
Assim, o quinto livro da Bíblia conjuga tanto a renovação do culto e das relações com Javé quanto as normas que devem ser observadas nas relações sociais, como por exemplo, a libertação dos escravos, a partilha das terras, a eliminação de abusos por parte dos poderosos e as relações econômicas entre os indivíduos, a fim de proteger os desprotegidos, amparar os pobres e abandonados.
Neste mês de setembro, mês que tradicionalmente no Brasil dedicamos à Bíblia, temos a proposta de estudar e rezar o livro do Deuteronômio. Este livro assumiu grande importância para os cristãos. Para se ter uma ideia ele é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento.
O tema escolhido para este ano, “abre tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11), nos compromete com uma leitura que nos ajude a encontrar em Deus o fundamento principal de nossas relações com o próximo. Ao mesmo tempo, a reflexão inspire sempre mais as nossas relações sociais e o nosso compromisso de cristãos conscientes do nosso papel na sociedade para a construção de uma nova civilização, a civilização do amor.
Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.