Outros carnavais

fevereiro 23, 2020 / no comments

Chegou mais um carnaval e com ele os “rituais” que o acompanham: a música, a dança, as fantasias, para não falar dos excessos que muitas vezes trazem tristeza a uma festa que pretende ter como pauta a alegria.

A origem da palavra carnaval (do latim, carnem levare – afastar a carne), em contexto cristão, indica a relação religiosa que a festa tem com o tempo que a liturgia católica chama de quaresma, tradicionalmente marcado pela abstinência de carne. Durante os quarenta dias (quaresma) que seguem ao carnaval, o cristão será convidado a uma profunda revisão de vida. Através de algumas práticas, com destaque para uma escuta mais abundante da Palavra de Deus, procura-se avaliar o caminho percorrido, tendo presente a meta que Deus propõe de uma vida vivida com mais sentido, superando o egoísmo e colocando no centro o amor. A quaresma, como a primavera, propõe recomeçar, e isso é sempre possível no encontro com o Cristo Ressuscitado, imagem da humanidade nova.

É verdade que, pouco a pouco, o sentido originário religioso, foi se perdendo. A tradição cultural do carnaval, ganhou novos rostos. A festa das cores, da música, da imaginação, das máscaras foi se convertendo em uma festa turística, comercial, um espetáculo, uma simples diversão, em um mundo que se farta de instrumentos para a diversão. O seu sentido original relacionado com o tempo da quaresma, mudou completamente. Agora, para muitos, trata-se de celebrar o carnaval, mas sem a quaresma e a Páscoa.

É interessante notar que a quaresma aparece entre uma felicidade que se fabrica nos ritmos carnavalescos e uma outra que vem da vida do Ressuscitado, na celebração da Páscoa, oferecendo vida em abundância aos que o encontram.

Seria uma pena contentar-se com uma “felicidade pequena”, como aquela que cantava o “Poetinha”, em uma de suas belas poesias, simplesmente como “a grande ilusão do carnaval. A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho pra fazer a fantasia de rei, ou de pirata, ou jardineira, e tudo se acabar na quarta-feira.”

É verdade que sonhar é próprio do ser humano. Formulamos nossos sonhos e colocamos os meios para alcançá-los. É sempre permitido sonhar, mas sem tirar os pés do chão, pois os sonhos melhores são aqueles que se transformam em realidade. Os sonhos falam também dos mistérios profundos que o coração humano abriga e do desejo de uma felicidade que não seja como a “doce ilusão do carnaval”.

Após os dias de carnaval, a quaresma oferecerá a oportunidade de colocar os pés na realidade para ver o que acontece conosco e com o mundo ao nosso redor, para que em um novo encontro com Cristo e com o seu Evangelho, acolhamos a proposta de felicidade perene que a fé oferece. Assim, um outro modo de conceber o carnaval pode nos ajudar a viver uma vida melhor, semeando sementes de um mundo novo.

Neste ano, no grande contexto das práticas quaresmais, a Igreja católica no Brasil oferece à nossa reflexão e à nossa ação a imagem do Bom Samaritano. Diante das realidades de dores do nosso tempo queremos, a seu exemplo, ver, sentir compaixão e cuidar de quem precisa.

Durante esses dias, muitos também se retiram para um tempo maior de oração e de partilha da vida para iniciar com ânimo um itinerário quaresmal mais consistente. São outros carnavais possíveis, que oferecem descanso, paz interior e renovam as forças para seguir em frente na luta cotidiana que torna a vida uma aventura que vale a pena.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB