Quando os sinos chamam

setembro 23, 2019 / no comments

No dia 24 de setembro, celebra-se a festa de Nossa Senhora das Mercês (bondades, favores, misericórdias). A devoção é antiga, remonta  ao século XIII, e tem sua motivação nas aparições de Nossa Senhora a São Pedro Nolasco, na Espanha, dando-lhe a incumbência de libertar os cristãos escravizados na África. Após a experiência mística, o santo vendeu seus bens e reuniu outras pessoas, formando um grupo para impulsionar a missão recebida da Virgem Maria. Os integrantes daquela nova Ordem nascente, chamada de “Mercedários”, entenderam de tal modo o empenho a que eram convidados, que acrescentaram um quarto voto aos já estabelecidos aos religiosos: dedicar a vida toda para libertar escravos e, até mesmo, comprometer-se a ficar em lugar de um prisioneiro quando este estivesse em perigo de perder a fé e o dinheiro não alcançasse o valor da sua libertação.

A devoção a Nossa Senhora das Mercês atravessou os mares e se espalhou pelo mundo. Chegou até nós brasileiros e em sua honra foram construídas igrejas e fundadas confrarias.

Nesta semana tive a alegria de participar, como pregador, de alguns dias da novena na Igreja da Arquiconfraria de Nossa Senhora das Mercês, a Ela dedicada na histórica e bela cidade de São João del Rei, em Minas Gerais. Confesso ter ficado tocado pelo ardor do povo na participação das orações que se prolongavam, respeitando o ritmo das preces herdadas de uma longa tradição. Trata-se de um verdadeiro mergulho numa devoção que já dura quase 300 anos naquelas terras, e que traduz nos seus textos, música e cantos, o afeto filial dos que encontram refúgio sempre seguro e libertação oportuna nas mãos da Mãe de Jesus e nossa. A devoção e arte se encontram, criando uma beleza genuína e atraente. São marcas da fé que, apesar do passar dos tempos, permanecem e continuam inspirando a vida de pessoas de todos os níveis sociais, imprimindo ritmo saudável a toda uma população.

Quando os sinos tocam, quem se encontra na cidade é convidado a elevar o pensamento e o coração a Deus ao longo de toda a jornada. E isso não apenas durante o novenário! Os dias sãojoanenses têm uma diferenciação no seu ritmo. Os mais de 50 sinos das belas Igrejas barrocas, que soam ao longo do dia e também da noite, recordam aos cidadãos que um Deus grande, bom e belo os acompanha nas mais variadas circunstâncias: domingos, festas, trabalhos, exultações, dores e mortes. O badalar dos sinos lembram um Deus que entra na vida das pessoas e as ajuda a reconhecer o valor das horas e das tarefas que fazem parte do cotidiano de todo mundo. Nos vários tipos de toques, se sabe se alguém nasceu, morreu, o horário das missas, procissões e festividades das igrejas. São marcas da fé que nos ajudam a bem contar os nossos dias (Sl 89, 12) e deixam seus rastros na vida da família, nas funções profissionais e enchem de dignidade a vida do ser humano. Estes mesmos sinais, além de convocar-nos a pensar em Deus e encontrar sentido e alívio, recordam a solidariedade entre as pessoas, pois as irmanam nos diversos acontecimentos da vida daqueles que vivem perto de nós. Fé e vida se encontram, respeitando a autonomia de suas realidades. Destaca-se, assim, a dignidade da vida de todos os dias, enche-se de sentido as realidades vividas, mostra-se que fé e vida quando unidas, longe de rebaixar a vida humana, abrem-na a novas, grandes e belas possibilidades.

A recordação de Nossa Senhora das Mercês, neste 24 de setembro, nos faça elevar-lhe uma prece fervorosa para suplicar a libertação de toda a humanidade das novas e velhas escravidões, comprometendo-nos a unir sempre mais a fé à existência de todos os dias.

 

Artigo de dom Gilson Andrade da Silva

Bispo Diocesano de Nova Iguaçu (RJ)

Chorar com os que choram

setembro 16, 2019 / no comments

O dia 15 de setembro, no calendário das celebrações litúrgicas da Igreja católica, faz-se memória de Nossa Senhora da Piedade, ou também, Nossa Senhora das Dores. A cidade de Nova Iguaçu teve sua origem junto à capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade que, em 1699, o alferes José Dias de Araújo construiu, à margem direita do rio Iguaçu. Em 1719, Iguaçu foi elevada à Freguesia Curada, podendo assim contar com assistência religiosa mais estável de um sacerdote. Neste ano de 2019, portanto, contam-se 300 anos deste fato que se situa entre os marcos da história da região. Em 1833, com a criação da Vila de Iguaçu, Nossa Senhora da Piedade é nomeada padroeira do novo município. Com a criação da Diocese em 1960, ela se torna co-padroeira da Diocese, tendo Santo Antônio o lugar do Padroeiro.

A imagem de Nossa Senhora da Piedade é de grande inspiração para as mulheres e os homens de todos os tempos. Ela manifesta a proximidade de Maria ao mistério da Cruz do seu Filho. Junto à cruz de Jesus estava a sua Mãe, nos conta o evangelista São João (Jo 19, 25). A expressão do olhar da mulher que recebe o Filho morto em seus braços, revela algo que é mais forte que a dor: o seu amor materno que olha para o Filho e que sabe transcender a sua dor, sendo solidária ao sofrimento de toda a humanidade. Maria sabe que a causa das dores do seu Filho e de sua morte se encontra no pecado que separa o homem de Deus e o aliena num mundo construído à revelia do projeto de amor que o Criador pensou para ele. Sabe que a humanidade que se distancia de Deus e de seu projeto acaba por reproduzir mais dores. Por isso, ela se coloca ao lado dos que sofrem e sabe chorar com os que choram (Rm 12, 15).

Nosso mundo continua trazendo em si tantas marcas de sofrimentos e dores. Nesta última semana presenciamos tragédias muito próximas a nós que nos comoveram e nos colocaram diante da pergunta sobre o sentido da existência humana e da dor. Também nestes casos não nos paralisamos nas perguntas, mas tentamos, como Maria, transcender a dor em tantos gestos de solidariedade que se multiplicaram e ainda se multiplicam, alguns, inclusive, verdadeiramente heroicos. A marca da dor atravessa a história da humanidade e os nossos dias não escapam da sua presença. Recentemente, lendo o diário de Etty Hillesum, uma judia morta no campo de concentração de Auschwitz, no ano de 1943, deparei-me com uma afirmação surpreendente, na boca de alguém que percebia que a morte estava à espreita. Ela conta que de repente lhe veio este pensamento: “sempre haverá sofrimento, na realidade o que importa é a razão pela qual a pessoa sofre”. A dor não é a última palavra. Até mesmo ela pode ser transfigurada quando há uma razão que seja capaz de superar o seu peso e de dar sentido ao sofrimento porque se está passando. E nada é suficientemente forte para superar a dor senão o amor. Como lembra o livro bíblico do Cânticos dos Cânticos: “o amor é mais forte do que a morte” (8, 6).

Na imagem de Nossa Senhora da Piedade a dor é transfigurada pelo amor de uma mãe. Cristo também, com o seu amor deu sentido a uma morte que, de trágica, se tornou capaz de ir até o extremo da doação de amor, manifestação de um amor que não se impõe limites. Nós cristãos cremos que este amor foi o que salvou o mundo. Como Cristo e como Maria somos chamados a colocar-nos do lado dos sofredores do nosso tempo, tornando-nos solidários, ajudando-os a carregar a cruz, como novos Cirineus, sabendo chorar com os que choram, ajudando nossos irmãos a transfigurar a dor em amor.

 

Artigo de dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu (RJ)