Papa aprovou Documento Final do Sínodo como guia para o trabalho nas dioceses

outubro 31, 2024 / no comments

Papa aprovou Documento Final do Sínodo como guia para o trabalho nas dioceses

 

 

O Documento Final foi votado, aprovado em todos os seus 155 parágrafos, está publicado e não será objeto de uma exortação do Papa: Francisco decidiu que seja imediatamente divulgado para que possa inspirar a vida da Igreja. “O processo sinodal não se encerra com o término da assembleia, mas inclui a fase de implementação” (9). Envolvendo todos no “caminho cotidiano com uma metodologia sinodal de consulta e discernimento, identificando modos concretos e percursos formativos para realizar uma tangível conversão sinodal nas várias realidades eclesiais” (9). No Documento, em particular, é solicitado aos bispos um compromisso intenso em relação à transparência e à prestação de contas, enquanto — como também declarou o cardeal Férnandez, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé — estão em andamento trabalhos para dar mais espaço e poder às mulheres.

O Papa Francisco proferiu um discurso no último sábado, 26 de outubro, na Sala Paulo VI, no Vaticano, após a votação e aprovação do Documento Final da segunda sessão da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos. O Pontífice sublinhou que o Documento Final representa “o fruto de anos, pelo menos três”, dedicados à escuta do Povo de Deus e reflete o propósito de uma Igreja mais sinodal. “As referências bíblicas que abrem cada capítulo organizam a mensagem cruzando-a com os gestos e as palavras do Senhor Ressuscitado, que nos chama a ser testemunhas do seu Evangelho mais com a vida do que com as palavras”, afirmou Francisco, citando diretamente o documento.

Missão da Igreja no ambiente digital

O documento traz pontos importantes que abordam a missão da Igreja no ambiente digital. Reconhecendo a crescente influência da cultura digital, especialmente entre os jovens, o documento oferece uma visão transformadora para o futuro da evangelização online.

Segundo o documento, cada cristão é chamado a atuar como missionário nos contextos onde vive, incluindo o ambiente digital. No espírito de liberdade do Evangelho, os fiéis são incentivados a anunciar a mensagem cristã em seus círculos digitais, nos quais se encontram inúmeras oportunidades para evangelizar e construir uma cultura inspirada pela fé. A Igreja, porém, é instada a acompanhar e fortalecer esses missionários digitais, sustentando-os com o “pão da Palavra e da Eucaristia” e reconhecendo que seu trabalho não é uma missão individual, mas uma ação de toda a Igreja.

Duas palavras-chave emergem do texto — permeado pela perspectiva e pela proposta de conversão —: “relações” — que é uma maneira de ser Igreja — e “vínculos”, no sentido de um “intercâmbio de dons” entre as Igrejas, vivido de forma dinâmica e, assim, para converter os processos. Justamente as Igrejas locais estão no centro do horizonte missionário, que é o próprio fundamento da experiência de pluralidade da sinodalidade, com todas as estruturas a serviço, em suma, da missão, com o laicato cada vez mais ao centro e protagonista. E, nessa perspectiva, a concretude de estar enraizados em um “lugar” emerge com força no Documento Final. Também é particularmente significativa a proposta apresentada no Documento para que os Dicastérios da Santa Sé possam iniciar uma consulta “antes de publicar documentos normativos importantes” (135).

A estrutura do Documento

O Documento Final é composto por cinco partes (11). A primeira, intitulada: O coração da sinodalidade, é seguida pela segunda parte — Juntos, na barca de Pedro — “dedicada à conversão das relações que edificam a comunidade cristã e dão forma à missão na intersecção de vocações, carismas e ministérios”. A terceira parte — Sobre a tua Palavra — “identifica três práticas intimamente interligadas: discernimento eclesial, processos decisórios, cultura da transparência, da prestação de contas e da avaliação”. A quarta parte — Uma pesca abundante — “delineia a forma como é possível cultivar, de maneira nova, o intercâmbio de dons e o entrelaçamento de vínculos que nos unem na Igreja, em um tempo em que a experiência de enraizamento em um lugar está mudando profundamente”. Finalmente, a quinta parte — Também eu vos envio — “permite olhar para o primeiro passo a ser dado: promover a formação de todos para a sinodalidade missionária”. Em particular, observa-se que o desenvolvimento do Documento é guiado pelos relatos evangélicos da Ressurreição (12).

As feridas do Ressuscitado continuam a sangrar

A Introdução do Documento (1-12) esclarece desde o início a essência do Sínodo como uma “experiência renovada daquele encontro com o Ressuscitado que os discípulos viveram no Cenáculo na noite de Páscoa” (1). “Contemplando o Ressuscitado” — afirma o Documento — “vislumbramos também os sinais de Suas feridas (…) que continuam a sangrar no corpo de muitos irmãos e irmãs, inclusive devido a nossas próprias falhas. O olhar voltado ao Senhor não nos afasta dos dramas da história, mas nos abre os olhos para reconhecer o sofrimento que nos rodeia e nos penetra: os rostos das crianças aterrorizadas pela guerra, o choro das mães, os sonhos desfeitos de tantos jovens, os refugiados que enfrentam jornadas terríveis, as vítimas das mudanças climáticas e das injustiças sociais” (2). O Sínodo, ao lembrar as “muitas guerras” em curso, uniu-se aos “repetidos apelos do Papa Francisco pela paz, condenando a lógica da violência, do ódio, da vingança” (2). Além disso, o caminho sinodal é marcadamente ecumênico — “orienta-se para uma unidade plena e visível dos cristãos” (4) — e “constitui um verdadeiro ato de recepção adicional” do Concílio Vaticano II, prolongando sua “inspiração” e renovando “para o mundo de hoje a sua força profética” (5). Nem tudo foi fácil, reconhece o Documento: “Não escondemos que experimentamos em nós dificuldades, resistências à mudança e a tentação de fazer prevalecer nossas próprias ideias sobre a escuta da Palavra de Deus e a prática do discernimento” (6).

O coração da sinodalidade

A primeira parte do Documento (13-48) se abre com reflexões compartilhadas sobre a “Igreja Povo de Deus, sacramento de unidade” (15-20) e sobre as “raízes sacramentais do Povo de Deus” (21-27). É um fato que, justamente “graças à experiência dos últimos anos”, o significado dos termos “sinodalidade” e “sinodal” tenha “sido mais bem compreendido e, ainda mais, vivido” (28). E “cada vez mais, esses termos têm sido associados ao desejo de uma Igreja mais próxima das pessoas e mais relacional, que seja casa e família de Deus” (28). “Em termos simples e sintéticos, pode-se dizer que a sinodalidade é um caminho de renovação espiritual e de reforma estrutural para tornar a Igreja mais participativa e missionária, para torná-la, assim, mais capaz de caminhar com cada homem e mulher, irradiando a luz de Cristo” (28). Na consciência de que a unidade da Igreja não é uniformidade, “a valorização dos contextos, das culturas e das diversidades, e das relações entre eles, é uma chave para crescer como Igreja sinodal missionária” (40). Com o fortalecimento das relações também com as demais tradições religiosas, em particular “para construir um mundo melhor” e em paz (41).

A conversão das relações

“A necessidade de uma Igreja mais capaz de nutrir as relações: com o Senhor, entre homens e mulheres, nas famílias, nas comunidades, entre todos os cristãos, entre grupos sociais, entre religiões, com a criação” (50) é a constatação que abre a segunda parte do Documento (49-77). E “não faltou também quem compartilhou o sofrimento de se sentir excluído ou julgado” (50). “Para ser uma Igreja sinodal, é necessária, portanto, uma verdadeira conversão relacional. Devemos aprender novamente com o Evangelho que o cuidado com as relações e os vínculos não é uma estratégia ou instrumento para uma maior eficácia organizacional, mas é o modo como Deus Pai se revelou em Jesus e no Espírito” (50). As “recorrentes expressões de dor e sofrimento por parte de mulheres de todas as regiões e continentes, sejam leigas ou consagradas, durante o processo sinodal, revelam o quanto frequentemente falhamos em fazer isso” (52). Em particular, “o chamado à renovação das relações no Senhor Jesus ressoa na pluralidade de contextos” ligados “ao pluralismo das culturas”, com, às vezes, “sinais de lógicas relacionais distorcidas e até mesmo opostas às do Evangelho” (53). O ponto é direto: “Nessa dinâmica encontram-se as raízes dos males que afligem nosso mundo” (54), mas “o fechamento mais radical e dramático é aquele em relação à própria vida humana, que leva ao descarte de crianças, ainda no ventre materno, e dos idosos” (54).

Ministérios para a missão

“Carismas, vocação e ministérios para a missão” (57-67) estão no centro do Documento, que visa à participação mais ampla de leigas e leigos. O ministério ordenado é “a serviço da harmonia” (68) e, em especial, “o ministério do bispo” é “unir em unidade os dons do Espírito” (69-71). Entre diversas questões, foi constatado que “a relação constitutiva do Bispo com a Igreja local não parece hoje suficientemente clara no caso dos Bispos titulares, como os Representantes pontifícios e aqueles que servem na Cúria Romana”. Junto com o bispo estão “presbíteros e diáconos” (72-73), para uma “colaboração entre os ministros ordenados na Igreja sinodal” (74). É significativa, ainda, a experiência da “espiritualidade sinodal” (43-48), com a certeza de que “se faltar a profundidade espiritual pessoal e comunitária, a sinodalidade se reduz a um expediente organizacional” (44). Por isso, destaca-se, “praticado com humildade, o estilo sinodal pode tornar a Igreja uma voz profética no mundo de hoje” (47).

A conversão dos processos

Na terceira parte do Documento (79-108), é imediatamente destacado que “na oração e no diálogo fraterno, reconhecemos que o discernimento eclesial, o cuidado dos processos decisórios e o compromisso de prestar contas de nossas ações e de avaliar os resultados das decisões tomadas são práticas com as quais respondemos à Palavra que nos indica os caminhos da missão” (79). Em particular, “essas três práticas estão intimamente interligadas. Os processos decisórios necessitam do discernimento eclesial, que requer escuta em um clima de confiança, que a transparência e a prestação de contas sustentam. A confiança deve ser mútua: aqueles que tomam as decisões precisam poder confiar e ouvir o Povo de Deus, que, por sua vez, necessita poder confiar em quem exerce a autoridade” (80). “O discernimento eclesial para a missão” (81-86), na verdade, “não é uma técnica organizativa, mas uma prática espiritual a ser vivida na fé” e “nunca é a afirmação de um ponto de vista pessoal ou de grupo, nem se resolve na simples soma de opiniões individuais” (82). “A articulação dos processos decisórios” (87-94), “transparência, prestação de contas, avaliação” (95-102), “sinodalidade e organismos de participação” (103-108) são pontos centrais das propostas contidas no Documento, surgidas da experiência do Sínodo.

A conversão dos laços

“Em um tempo em que muda a experiência dos lugares onde a Igreja está enraizada e peregrina, é necessário cultivar de novas formas a troca de dons e a interligação dos laços que nos unem, sustentados pelo ministério dos Bispos em comunhão entre si e com o Bispo de Roma”: esta é a essência da quarta parte do Documento (109-139). A expressão “enraizados e peregrinos” (110-119) recorda que “a Igreja não pode ser compreendida sem o enraizamento em um território concreto, em um espaço e em um tempo onde se forma uma experiência compartilhada de encontro com Deus que salva” (110). Também com uma atenção aos fenômenos da “mobilidade humana” (112) e da “cultura digital” (113). Nessa perspectiva, “caminhar juntos nos diferentes lugares como discípulos de Jesus na diversidade dos carismas e dos ministérios, assim como na troca de dons entre as Igrejas, é um sinal eficaz da presença do amor e da misericórdia de Deus em Cristo” (120). “O horizonte da comunhão na troca de dons é o critério inspirador das relações entre as Igrejas” (124). Daqui surgem os “laços pela unidade: Conferências episcopais e Assembleias eclesiais” (124-129). Particularmente significativa é a reflexão sinodal sobre “o serviço do bispo de Roma” (130-139). Justamente no estilo da colaboração e da escuta, “antes de publicar documentos normativos importantes, os Dicastérios são exortados a iniciar uma consulta das Conferências episcopais e dos organismos correspondentes das Igrejas Orientais Católicas” (135).

Formar um povo de discípulos missionários

“Para que o santo Povo de Deus possa testemunhar a todos a alegria do Evangelho, crescendo na prática da sinodalidade, necessita de uma formação adequada: antes de tudo, à liberdade de filhos e filhas de Deus na sequela de Jesus Cristo, contemplado na oração e reconhecido nos pobres”, afirma o Documento em sua quinta parte (140-151). “Uma das solicitações que emergiram com maior força e de todos os lados ao longo do processo sinodal é que a formação seja integral, contínua e compartilhada” (143). Também nesse campo retorna a urgência da “troca de dons entre vocações diferentes (comunhão), sob a perspectiva de um serviço a ser prestado (missão) e em um estilo de envolvimento e de educação à corresponsabilidade diferenciada (participação)” (147). E “um outro âmbito de grande relevância é a promoção em todos os ambientes eclesiais de uma cultura de proteção (safeguarding), para tornar as comunidades lugares cada vez mais seguros para os menores e as pessoas vulneráveis” (150). Finalmente, “também os temas da doutrina social da Igreja, do compromisso pela paz e justiça, do cuidado da casa comum e do diálogo intercultural e inter-religioso devem ter maior difusão no Povo de Deus” (151).

Entrega a Maria

“Vivendo o processo sinodal – é a conclusão do Documento (154) – tomamos nova consciência de que a salvação a ser recebida e anunciada passa pelas relações. Vive-se e testemunha-se juntas. A história nos aparece tragicamente marcada pela guerra, pela rivalidade pelo poder, por mil injustiças e opressões. Contudo, sabemos que o Espírito colocou no coração de cada ser humano um desejo profundo e silencioso de relações autênticas e de laços verdadeiros. A própria criação fala de unidade e de compartilhamento, de variedade e interligação entre diferentes formas de vida.” O texto se conclui com a oração à Virgem Maria pela entrega “dos resultados deste Sínodo: ‘Ensina-nos a ser um Povo de discípulos missionários que caminham juntos: uma Igreja sinodal’” (155).

Documento final

Publicamos, abaixo, a primeira versão do documento. O texto está em italiano. Publicaremos a versão em português tão logo seja publicada a tradução oficial:

Relatório final da Segunda Sessão Mundial da XVI Assembleia Geral Ordinária da Assembleia dos Bispos


Fonte: CNBB

“Amou-nos”, a Encíclica do Papa sobre o Sagrado Coração de Jesus

outubro 31, 2024 / no comments

“Amou-nos”, a Encíclica do Papa sobre o Sagrado Coração de Jesus

 

 

“’Amou-nos’, diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8,37), para nos ajudar descobrir que nada ‘será capaz de separar-nos’ desse amor (Rm 8,39)”. Assim começa a quarta Encíclica do Papa Francisco, intitulada a partir do incipit “Dilexit nos” e dedicada ao amor humano e divino do Coração de Jesus: “O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1 Jo 4, 10). Graças a Jesus, ‘conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele’ (1 Jo 4, 16)” (1).

LEIA AQUI O TEXTO INTEGRAL DA ENCÍCLICA

O amor de Cristo representado em seu santo Coração

Em uma sociedade – escreve o Papa – que vê a multiplicação de “várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor” (87), enquanto o cristianismo muitas vezes esquece “a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa” (88), o Papa Francisco propõe um novo aprofundamento sobre o amor de Cristo representado em seu santo Coração e nos convida a renovar nossa autêntica devoção, lembrando que no Coração de Cristo “encontramos todo o Evangelho” (89): É em seu Coração que “finalmente nos reconhecemos e aprendemos a amar” (30).

Francisco explica que, ao encontrar o amor de Cristo, “tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum”, como ele nos convida a fazer em suas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti (217). E diante do Coração de Cristo, pede mais uma vez ao Senhor “que tenha compaixão desta terra ferida” e derrame sobre ela “os tesouros da sua luz e do seu amor”, para que o mundo, “que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconômicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração” (31). Ao anunciar a preparação do documento, no final da audiência geral de 5 de junho, o Pontífice deixou claro que este ajudaria a meditar sobre os aspectos “do amor do Senhor que podem iluminar o caminho da renovação eclesial; mas também que podem dizer algo significativo a um mundo que parece ter perdido seu coração”. E isso enquanto as celebrações estão em andamento pelos 350 anos da primeira manifestação do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, em 1673, que se encerrarão em 27 de junho de 2025.

A importância de voltar ao coração

Aberta por uma breve introdução e dividida em cinco capítulos, a Encíclica sobre o culto ao Sagrado Coração de Jesus reúne, como anunciado em junho, “as preciosas reflexões de textos magisteriais precedentes e de uma longa história que remonta às Sagradas Escrituras, para repropor hoje, a toda a Igreja, esse culto carregado de beleza espiritual”.

O primeiro capítulo, “A importância do coração”, explica por que é necessário “voltar ao coração” em um mundo no qual somos tentados a “nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado” (2). E faz isso analisando o que queremos dizer com “coração”: a Bíblia fala dele como um núcleo “que se esconde por detrás de todas as aparências” (4), um lugar onde “não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos” (6). Ao coração conduzem as perguntas decisivas: que sentido quero dar à vida, às minhas escolhas e ações, quem sou diante de Deus (8). O Papa ressalta que a atual desvalorização do coração nasce do “racionalismo grego e pré-cristão, do idealismo pós-cristão e do materialismo”, de modo que, no grande pensamento filosófico, foram preferidos conceitos como “razão, vontade ou liberdade”. E não encontrando lugar para o coração, também “não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal” que pode unificar tudo, ou seja, o amor, (10). Ao invés, para o Pontífice, é preciso reconhecer que “eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas” (14).

É o coração “que une os fragmentos” e torna possível “qualquer vínculo autêntico, porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo” (17). A espiritualidade de santos como Inácio de Loyola (aceitar a amizade do Senhor é uma questão de coração) e São John Henry Newman (o Senhor nos salva falando ao nosso coração a partir do seu sagrado Coração) nos ensina, escreve o Papa Francisco, que “perante o Coração de Jesus vivo e atual, o nosso intelecto, iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus” (27). E isso tem consequências sociais, porque o mundo pode mudar “a partir do coração” (28).

“Gestos e palavras de amor”

O segundo capítulo é dedicado aos gestos e palavras de amor de Cristo. Os gestos com os quais nos trata como amigos e mostra que Deus “é proximidade, compaixão e ternura” são vistos em seus encontros com a Samaritana, com Nicodemos, com a prostituta, com a mulher adúltera e com o cego no caminho (35). Seu olhar, que “perscruta as profundezas do seu ser” (39), mostra que Jesus “está atento às pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento” (40). De tal forma “que admira as coisas boas que encontra em nós”, como no centurião, mesmo que os outros as ignorem (41). Sua palavra de amor mais eloquente é ser “pregado numa cruz” (46), depois de chorar por seu amigo Lázaro e sofrer no Jardim das Oliveiras, ciente de sua própria morte violenta “nas mãos daqueles que tanto amava” (45).

O mistério de um coração que amou tanto

No terceiro capítulo, “Este é o coração que tanto amou”, o Pontífice recorda como a Igreja reflete e refletiu no passado “sobre o santo mistério do Coração do Senhor”. Ele faz isso fazendo referência à Encíclica Haurietis aquas, de Pio XII, sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus (1956). Ele deixa claro que “a devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da Pessoa de Jesus”, porque adoramos a “Jesus Cristo por inteiro, o Filho de Deus feito homem, representado numa imagem sua em que se destaca o seu coração” (48). A imagem do coração de carne, ressalta o Papa, nos ajuda a contemplar, na devoção, que “o amor do coração de Jesus não compreende somente a caridade divina, mas se estende aos sentimentos do afeto humano” (61). Seu Coração, prossegue Francisco citando Bento XVI, contém um “tríplice amor”: o amor sensível do seu coração físico “e o seu duplo amor espiritual, o humano e o divino” (66), no qual encontramos “o infinito no finito” (64).

O Sagrado Coração de Jesus é um compêndio do Evangelho

As visões de alguns santos, particularmente devotos do Coração de Cristo, ressalta Francisco, “são belos estímulos que podem motivar e fazer muito bem”, mas “não são algo em que os crentes sejam obrigados a acreditar como se fossem a Palavra de Deus”. Em seguida, o Papa lembra com Pio XII que não se pode dizer que este culto “deve a sua origem a revelações privadas”. Aliás, “a devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, até ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho” (83). O Pontífice nos convida, então, a renovar a devoção ao Coração de Cristo também para combater as “novas manifestações de uma ‘espiritualidade sem carne’” que estão se multiplicando na sociedade (87). É necessário retornar à “síntese encarnada do Evangelho” (90) diante de “comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos” (88).

A experiência de um amor “que dá de beber”

Nos dois últimos capítulos, o Papa Francisco destaca os dois aspectos que “a devoção ao Sagrado Coração deve reunir hoje para continuar a alimentar-nos e a aproximar-nos do Evangelho: a experiência espiritual pessoal e o compromisso comunitário e missionário” (91). No quarto, “O amor que dá de beber”, relê as Sagradas Escrituras e, com os primeiros cristãos, reconhece Cristo e seu lado aberto em “aquele a quem trespassaram”, a quem Deus se refere na profecia do livro de Zacarias. Uma fonte aberta para o povo, para saciar a sede do amor de Deus, “para a purificação do pecado e da impureza” (95). Vários Padres da Igreja mencionaram “a chaga no lado de Jesus como a origem da água do Espírito”, sobretudo Santo Agostinho, que “abriu o caminho para a devoção ao Sagrado Coração como lugar de encontro pessoal com o Senhor” (103).  Esse lado trespassado, recorda o Papa, “assumiu gradualmente a forma do coração” (109), e enumera várias santas mulheres que “relataram experiências de encontro com Cristo, caracterizado pelo repouso no Coração do Senhor” (110). Entre os devotos dos tempos modernos, a Encíclica fala, em primeiro lugar, de São Francisco de Sales, que representa a sua proposta de vida espiritual com um “coração trespassado por duas flechas, encerrado numa coroa de espinhos” (118)

As aparições a Santa Margarida Maria Alacoque

Sob a influência dessa espiritualidade, Santa Margarida Maria Alacoque relata as aparições de Jesus em Paray-le-Monial, entre o fim de dezembro de 1673 e junho de 1675. O núcleo da mensagem que nos é transmitida pode ser resumido nas palavras que Santa Margarida ouviu: “Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que a nada se tem poupado até se esgotar e consumir para lhes testemunhar o seu amor” (121).

Teresa de Lisieux, Inácio de Loyola e Faustina Kowalska

De Santa Teresa de Lisieux, o documento recorda o fato de chamar Jesus de “Aquele cujo coração batia em uníssono com o meu” (134) e suas cartas à Irmã Maria, que ajudam a não concentrar a devoção ao Sagrado Coração “no âmbito da dor”, como o daqueles que entendiam a reparação como uma espécie de “primado dos sacrifícios”, mas na confiança “como a melhor oferta, agradável ao Coração de Cristo” (138). O Pontífice jesuíta também dedica algumas passagens da Encíclica ao lugar do Sagrado Coração na história da Companhia de Jesus, enfatizando que, em seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola propõe ao exercitante “entrar no Coração de Cristo” em um diálogo de coração para coração. Em dezembro de 1871, o Padre Beckx consagrou a Companhia ao Sagrado Coração de Jesus e o Padre Arrupe voltou a fazê-lo em 1972 (146). As experiências de Santa Faustina Kowalska, recorda-se, repropõem a devoção “colocando uma forte ênfase na vida gloriosa do Ressuscitado e na misericórdia divina” e, motivado por elas, São João Paulo II também “relacionou intimamente a sua reflexão sobre a misericórdia com a devoção ao Coração de Cristo” (149). Falando da “devoção da consolação”, a Encíclica explica que, diante dos sinais da Paixão conservados pelo coração do Ressuscitado, é inevitável “que o fiel queira responder” também “à dor que Cristo aceitou suportar por causa de tanto amor” (151). E pede “que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo” (160). Pois que, então, “desejando consolá-lo, saímos consolados” e assim “também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação” (162).

A devoção ao Coração de Cristo nos envia aos irmãos

O quinto e último capítulo, “Amor por amor”, aprofunda a dimensão comunitária, social e missionária de toda autêntica devoção ao Coração de Cristo, que, ao mesmo tempo que “nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos” (163). De fato, o amor aos irmãos é o “maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor” (167). Olhando para a história da espiritualidade, o Pontífice recorda que o empenho missionário de São Charles de Foucauld fez dele um “irmão universal”: “deixando-se plasmar pelo Coração de Cristo, quis abraçar no seu coração fraterno toda a humanidade sofredora” (179). Francisco fala então de “reparação”, como explicava São João Paulo II: “entregando-nos em conjunto ao Coração de Cristo, ‘sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo’” (182).

A missão de fazer o mundo se apaixonar

A Encíclica recorda novamente com São João Paulo II que “a consagração ao Coração de Cristo ‘deve ser aproximada à ação missionária da própria Igreja, porque responde ao desejo do Coração de Jesus de propagar no mundo, através dos membros do seu Corpo, a sua total dedicação ao Reino’. Por conseguinte, através dos cristãos, ‘o amor difundir-se-á no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade’” (206). Para evitar o grande risco, sublinhado por São Paulo VI, de que na missão “se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo” (208), precisamos de “missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo” (209).

A oração de Francisco

O texto se conclui com a seguinte oração de Francisco: “Peço ao Senhor Jesus Cristo que, para todos nós, do seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno. Isto até que, com alegria, celebremos unidos o banquete do Reino celeste. Aí estará Cristo ressuscitado, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto. Bendito seja!” (220).

Fonte: Vatican News