Ainda há espaço para o perdão?

setembro 7, 2020 / no comments

Ainda há espaço para o perdão?

 

Frequentando as redes sociais e sites de notícias fico cada vez mais impressionado pelo teor de alguns comentários que costumam acompanhar as publicações, manifestando a opinião dos leitores.

É verdade que hoje os meios de comunicação permitem uma interação que pode enriquecer os fatos narrados e as opiniões apresentadas, ao mesmo tempo que representam uma oportunidade de se ver a questão a partir de outros pontos de vista.

Acompanhando notícias de todos os tipos, desde as crônicas do dia a dia, passando pelas informações sobre os esportes, a administração pública, o sistema judiciário, a religião, etc., tudo fica exposto ao crivo dos “juízes”, os mais diversos.

O tom de muitas colocações, às vezes, denota a ausência de palavras que lembrem que, entre tantas outras possibilidades de posturas, também existe aquela do perdão. Há muito sabor amargo em tantas exposições e, por isso, me pergunto se na nossa sociedade ainda há espaço para o perdão.

Quando falo de perdão é preciso entender que aqui não se pretende relativizar o valor moral dos equívocos cometidos. A reta razão exige que as coisas sejam valoradas conforme o juízo moral ou ético que lhes correspondem. Lembro-me de um dos meus professores que dizia que era preciso chamar o mal de mal e o bem de bem. As coisas têm em si mesmas um valor que independe imediatamente do sujeito que a valoriza.

Há uma forte presença de uma visão pessimista sobre a realidade que pode gerar muita desesperança ao nosso redor. Em parte, acredito que essa tendência pode provir de um certo esvaziamento de uma visão cristã da realidade. Por outro lado, é verdade também que os discípulos de Jesus, que receberam do Mestre o mandamento novo do amor, nem sempre damos aquele testemunho que corrobora para o bom êxito do anúncio da mensagem. Mas este fato, que faz parte da fragilidade do ser humano, não tira o valor daquilo que Jesus ensinou. No cristianismo se lembra que há sempre a possibilidade de pedir perdão, recomeçar e que a graça de Deus é capaz de restaurar o ser humano a partir de dentro.

Muitas vezes o mal cometido exigirá uma punição que deverá ser cumprida. Mas mesmo assim se faz necessário o perdão tanto para si próprio como para alguém que nos ofendeu. O perdão abre a realidade humana a novas possibilidades, que muitas vezes se apresentam como inesperadas.

Vem-me à memória a imagem de uma visita que, em 1983, o Papa João Paulo II, fez ao autor do atentado que quase o matou em 1981. A aproximação de ambos, a conversa quase ao pé do ouvido entre os dois sentados, um em frente ao outro, parecia descrever um ritual que surpreendeu o mundo. Este mesmo homem, Ali Agca, 31 anos depois do encontro, entrou na Basílica de São Pedro no Vaticano para depositar flores junto do túmulo do Papa que o abraçou e perdoou. Na ocasião ele declarou estar felicíssimo por estar realizando aquele gesto de estima e agradecimento.

A insistência do Papa Francisco pelo fomento de uma cultura do encontro é expressão da necessidade de uma urgente revisão das atitudes que caracterizam tantos relacionamentos em nosso mundo. Os fatos da atualidade parecem sugerir que é hora de se redescobrir o perdão também como fator de reconstrução da história presente. Revisitar o Evangelho sob a ótica do perdão poderá nos ajudar a encontrar caminhos para as encruzilhadas de hoje. A luz não está no fim do túnel. Ela nos rodeia e nos pede abrir espaço dentro do coração que é o lugar por excelência da decisão de perdoar.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Uma pergunta incômoda

agosto 23, 2020 / no comments

Uma pergunta incômoda

Colocar-se perguntas é próprio do ser humano e trata-se de uma atividade que não termina nunca. A própria vida se encarrega de provocar a reflexão. Há perguntas cujas respostas podem orientar para sempre a vida de uma pessoa. Não é diferente na experiência religiosa. A religião, para além de questão sentimental, é uma escolha que dá sentido e orientação à própria existência. A capacidade de se questionar é um pressuposto indispensável para alguém que decide percorrer o caminho do cristianismo. A liturgia da Missa deste domingo ilustra isso através de um diálogo que Jesus estabelece com os seus discípulos mais achegados (Mt 16, 13-20).

Jesus se dirige à região de Cesaréia de Filipe com o grupo dos Doze que o seguia. Trata-se de lugar distante do contexto habitual, uma área periférica do ponto de vista religioso, um ambiente diferente onde prevalecia o jeito romano de ser. Ali, Jesus lhes pergunta de forma genérica a opinião das pessoas sobre ele e, a seguir, questiona: “E para vocês, quem sou eu?”

A vocação cristã, por mais popular que seja, nunca dispensa a decisão pessoal. É preciso poder dizer quem é Jesus para mim. E isso não se responde apenas uma única vez na vida, por exemplo, no momento do batismo ou da crisma. Mas é uma resposta que as próprias circunstâncias exigem. O encontro com Cristo é atualizado nas vicissitudes da história e se atualiza quando nos deixamos alcançar por ele, em meio aos acontecimentos de nossa vida pessoal e dos movimentos da história. Por isso, o seguimento de Cristo é sempre atual e tem sempre alguma novidade a trazer, mesmo quando parece que não é possível nada de novo em determinados momentos.

O que aqui falo não se trata de uma bela teoria, mas a própria caminhada dos cristãos ao longo desses 21 séculos demonstra isso. É verdade que não faltam equívocos. E eles acontecem quando o discípulo do Senhor se afasta de sua presença e da proposta que ele veio trazer no seu Evangelho. Assim, o caminho de discípulo tem sempre em Cristo uma referência nova e iluminadora para todas as circunstâncias. Uma vez que o Verbo de Deus se encarnou num momento concreto, numa realidade cultural também concreta, a sua presença está atuante ao longo dos séculos, graças à sua Ressurreição.

Por isso, era decisivo para os apóstolos, naquele momento ter uma resposta à pergunta incômoda que Jesus lhes fazia.

que se dá por meio do encontro com pessoas que, por sua vez, estiveram em contato com Ele. Foi assim desde os inícios. Sempre se requer uma adesão consciente, uma vez que, por sua natureza, a fé cristã tende a comprometer a vida da pessoa por inteiro e a direcioná-la para uma opção coerente com o Evangelho.

Há muitas opiniões acerca de Jesus, sempre houve. Elas, de alguma maneira, representam modos de ver Jesus. Por exemplo, lembro-me que nos anos 70, o espetáculo Jesus Cristo Superstar trouxe uma interpretação de Jesus que o aproximava de certos movimentos culturais que na época eram tendência. Mas se tratava de uma forma de ver. Mas Jesus não é uma opinião que se adapta ao gosto do cliente, Ele é Deus encarnado. Não se trata do Cristo que eu gosto, mas do Cristo como Ele é.

A resposta de Simão Pedro, “tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, indica que para conhecer Jesus é preciso estar aberto ao dom que ele é e que o Pai nos oferece. Por isso, Jesus diz a Pedro que só pôde responder acertadamente à pergunta porque o Pai agiu no seu coração.

A tarefa de conhecer Jesus requer um aprofundamento durante a vida inteira e também a humildade de acolher a resposta de Pedro que é sempre atualizada nos caminhos da Igreja. É na experiência eclesial que se pode descobrir o verdadeiro rosto de Cristo e, a partir daí, iluminar a própria vida e os caminhos da história. Este é um desafio que nos corresponde hoje também.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.