Os santos estão entre nós

novembro 10, 2019 / no comments

O mês de novembro, além da celebração dos fiéis falecidos, lembra também todos os santos. Faz-se festa na terra por todos aqueles que alcançaram a meta da perfeição de Deus, a santidade.

Quando se fala de santidade, costuma-se ter uma ideia de perfeição moral. O santo é visto muitas vezes como uma pessoa irrepreensível, de quem não se pode falar nada em contra. Lembro-me ter lido anos atrás um livro com um título muito sugestivo: “Os defeitos dos santos”. Quem sabe alguém pode se pasmar, mas os santos também tinham os seus defeitos, seus equívocos. No entanto, eram pessoas que não desanimavam diante dos obstáculos, nem mesmo quando se tratava de suas imperfeições pessoais. Certa vez ouvi uma definição de santo que é bem justa: um pecador que não desiste de lutar.

Por outro lado, os santos fazem parte com muita frequência da nossa experiência. Nós os recordamos e invocamos nas diversas necessidades, gostamos de ouvir as histórias de suas vidas e as canonizações de pessoas que foram nossas contemporâneas nos dão a ideia de uma proximidade maior do que antes. Temos assistido canonizações de homens e mulheres com os quais muitas pessoas que ainda vivem, conheceram e conviveram.

Uma das grandes redescobertas do Concílio Vaticano II foi o chamado universal à santidade, ou seja, que todos pela força do Batismo, podem alcançar aquela perfeição do amor a Deus e ao próximo que está no coração do Evangelho. Esta perfeição é mais de Deus do que nossa, por isso os santos são transparência da ação de Deus na vida do mundo. A santidade não é privilégio de uma elite, mas está ao alcance de todos pela ação da graça divina, que opera no coração das mulheres e dos homens e também pela decidida correspondência de cada pessoa à ação divina. Ela se mostra “no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir” (Francisco, Gaudete et exultate, n. 7). Com essas palavras do Papa Francisco vemos que a santidade tem a ver com a vida cotidiana.

Uma certo tipo de iconografia dos santos representaram-nos modo a causar a impressão de que a santidade não tem a ver com as realidades desse nosso mundo, que é coisa de gente muito especial. Nada mais falso do que isso. Ser santo é uma realidade que se realiza a partir daquilo que se vive na existência simples do dia a dia. Um dos grandes pregadores da mensagem da vocação universal à santidade no século XX dizia que “Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir.” (São Josemaria Escrivá).

Os santos são as melhores testemunhas da atualidade do Evangelho, pois suas vidas são Evangelho vivido no contexto das atuais circunstâncias. Eles e elas conseguiram traduzir no modo de ser, falar, pensar, agir, a mente de Cristo e, sobretudo, o seu amor. Por meio deles a pregação do Evangelho é mais eficiente e capaz de tocar em profundidade a vida das pessoas.

Os que conviveram com os santos, mesmo sem saber que eles eram santos, testemunham que estiveram diante de alguém cuja humanidade era única. E de fato é assim, pois na humanidade dos santos se toca a humanidade de Cristo e isso é sempre surpreendente e capaz de transformar a vida, dando-lhe sentido novo, sentido autêntico.

 

Artigo de dom Gilson Andrada da Silva, bispo de Nova Iguaçu (RJ)

Rezar pelos mortos

novembro 3, 2019 / no comments

            Em um único dia, no 2 de novembro, a Igreja quis reunir a recordação de todos os fiéis falecidos para oferecer por eles mais abundantes sufrágios e, ao mesmo tempo, recordar-nos o sentido da vida humana à luz do nosso destino último que é a vida eterna e não a morte.

A liturgia da Igreja apresenta de forma bela a visão cristã sobre a morte: “Senhor, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio dos defuntos). Para aqueles que se apoiam na fé em Cristo a morte se revela como a posse definitiva de uma vida interminável e eterna. Ela é  o fim da “viagem” do ser humano na terra e lhe franqueia o porto seguro da eternidade. Com ela acaba o único curso de nossa vida terrestre, pois “não voltaremos mais a outras vidas terrestres: ‘os homens devem morrer uma só vez’(Hb9,27)”, assim afirma a fé dos cristãos, conforme o Catecismo da Igreja Católica (Cat. 1013). Desse modo, o cristão sabe que essa vida é a única oportunidade que se lhe oferece para ganhar ou perder a vida em plenitude. Isso significa que a vida deve ser encarada com a responsabilidade de quem sabe que vai viver apenas uma vez e que sua vida aqui na terra ganhará pleno sentido de acordo com o modo como se encaram todas as realidades vividas. Nesse sentido, é bem verdadeira o pedido do salmista: “Ensina-nos, Senhor, a bem contar os nossos dias” (Sl 89, 12).

Ao mesmo tempo, a fé católica, apoiada em textos da Sagrada Escritura e no testemunho da Tradição, afirma a existência de um estado de purificação, chamado purgatório,  para aqueles que “morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na glória do céu” (Cat.1030). A Escritura, de fato, fala implicitamente da existência de um estado de purificação após a morte. No segundo livro dos Macabeus (2Mac 12,42-46), os judeus oram pelos que morreram num combate, oferecendo sacrifícios expiatórios pelos mortos para que fossem absolvidos dos seus pecados, considerando ser que era “um pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam perdoados de seus pecados” (2Mac 12,46). O próprio Cristo fala de um tipo de pecado que, pela sua gravidade, não será perdoado neste mundo nem no vindouro(Mt12,32), aludindo assim quanto à possibilidade de purificação de outros pecados após a morte.

O purgatório, portanto, é um estado de purificaçãoe não de castigo. Na verdade, a própria pessoa ao tomar consciência do quanto foi amada por Deus e do pouco que correspondeu a esse amor, deseja purificar-se. Santa Catarina de Gênova diz algo que ajuda a compreender muito bem esse desejo de purificação que se experimenta diante da visão de Deus: “O céu não tem portas, e quem quiser entrar pode fazê-lo, porque Deus é todo misericórdia e permanece com os braços abertos para admiti-lo na sua glória. No entanto, o ser de Deus é tão puro que a alma justa, ao sair do seu corpo, vendo em si mesma alguma coisa que turva a sua inocência primitiva e se opõe à sua união com Ele, experimenta uma aflição incomparável; e como sabe muito bem que esse impedimento não pode ser destruído senão pelo fogo do purgatório, desce até lá imediatamente e com plena vontade[…]. Sabendo que o purgatório é o banho destinado a lavar essa espécie de manchas, corre para lá […], pensando muito menos nas dores que a esperam do que na alegria de reencontrar ali a sua primitiva pureza” (Tratado do purgatório, n.12).

Rezar pelos mortos é um gesto de solidariedade para com os que partiram. Os fiéis podem participar da purificação desses irmãos e irmãs, oferecendo a Deus a oração, os méritos das boas obras e o santo sacrifício da missa. No dia de finados, a memória supera a saudade e se transforma em união através da oração.

 

Artigo de dom Gilson Andrade da Silva, Bispo de Nova Iguaçu