Liberdade de expressão ou autorização do desrespeito?

janeiro 12, 2020 / no comments

Quando uma pessoa se sente ofendida por outra, normalmente o suposto ofensor, ao perceber a reação do ofendido, reflete acerca de seus atos e pondera para ver se aquilo que ele fez é proporcional à reação causada. Caso reconheça o exagero de sua ação, é coerente e recomendável que peça perdão pelo ato cometido e não insista na ofensa. Este simples aceno a uma realidade que faz parte do nosso cotidiano pode nos servir, de alguma forma, para nos ajudar a seguir refletindo sobre o que vem sendo objeto de questionamento da parte de muitos cristãos acerca do “especial de Natal” do grupo Porta dos Fundos.

As inúmeras publicações e os recursos à justiça, reagindo negativamente à produção, manifestam como as versões sarcásticas de Deus, de Jesus, como também de Maria e São José, apresentadas no “especial de Natal”, feriram o nosso sentimento religioso. Aliás, tem sido recorrente a manipulação da “arte”, em suas múltiplas expressões, para caçoar de elementos sagrados da fé cristã. E quando os cristãos reagem negativamente são taxados de retrógrados, intolerantes, etc. É bem oportuno lembrar o que disse algumas vezes o filósofo Luiz Pondé, colunista da Folha de São Paulo: “o único preconceito considerado ‘científico’ nos jantares inteligentes é o preconceito contra a Igreja Católica”. Na prática, parece funcionar assim: “riam das realidades sagradas dos cristãos e que eles simplesmente se calem”. A meu ver, isso beira à intolerância…

Causa-me estranheza que em nome de um legítimo direito, o da liberdade de expressão, se permita veicular produções artísticas que firam o sentimento religioso. Ao dar a liminar, autorizando a exibição do dito “especial de Natal”, o ministro Dias Toffoli alegou que o Supremo Tribunal Federal tem reforçado “a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”. Ora, essa mesma dignidade humana pede que se respeite o sentimento religioso, fruto das convicções religiosas de cada um, independentemente de sua crença.

A liberdade de expressão pertence a esse mundo de palavras cotidianas, usadas para muitos fins: comunicação, imprensa, partidos políticos, ONGs, etc. O risco das coisas usadas para muitos fins é precisamente o de esvaziar o seu verdadeiro e próprio sentido. Um exemplo simplório: em nome da liberdade de expressão há quem faça apologia à não vacinação nesse país, e assim assistimos o retorno de epidemias já erradicadas.

A liberdade de expressão é um valor indiscutível, mas pode-se abusar dela quando se ferem outros direitos que requerem igual proteção. Não se trata, portanto, de menosprezar esse valor, mas de garantir o legítimo respeito aos sentimentos religiosos.   É preciso que se respeite o que as pessoas conhecem e acreditam acerca de suas tradições religiosas e quando isso não acontece, que haja a devida reparação do dano causado.

Por outro lado, é bom ressaltar que, nas últimas décadas, tem havido um esforço em muitas direções para favorecer maior conhecimento e respeito recíproco entre os diversos seguimentos religiosos. Quando se autoriza o desrespeito aos sentimentos religiosos estamos colocando em risco o caminho delicado e importante que já foi percorrido.

A questão, no entanto, pode suscitar uma interessante reflexão sobre a importância e o valor do sagrado na vida das pessoas e da sociedade, uma vez que a valorização do sagrado e o desenvolvimento das civilizações ao longo da história estiveram sempre juntos.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu (RJ) e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB

 

A fraternidade, garantia da paz

janeiro 4, 2020 / no comments

Dentro do contexto das festas natalinas, sempre no 1º dia do ano, o Santo Padre oferece uma mensagem por ocasião da celebração do Dia Mundial da Paz. Esta mensagem é uma reflexão que deve ser continuamente retomada diante dos desafios que o tema da paz tem que enfrentar.

Este ano o tema foi “A paz como caminho de esperança: diálogo, reconciliação e conversão ecológica”. Relacionar paz e esperança é muito conveniente, pois ela “é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis” (n.1).

Nunca é demais recordar que, quando se trata da árdua luta pela paz, se se quer ser coerente, é sempre necessário percorrer vários caminhos. Pode-se dizer que o ponto de partida está no próprio coração. Não seria coerente buscar por todos os meios lícitos alcançar um projeto de paz se no coração da pessoa ela estivesse ameaçada ou ausente. A paz que se quer fora, começa a sua construção dentro de cada pessoa. Mais ainda, é necessário recordar que ela é um dom que vem do alto, que é necessário pedir e também trabalhar para alcançar. Esta é sem dúvida, uma das tarefas que a humanidade inteira precisa assumir como obra coletiva. Ninguém pode eximir-se desse compromisso comum. Também aqui a humanidade deve se saber e se sentir formada por irmãos e irmãs.

Assim, entre os vários elementos da mensagem deste ano, destaco algo que pode ser-nos muito útil dentro da responsabilidade que todos temos. A paz é caminho de reconciliação na comunhão fraterna, afirma o Papa. Aqui se recorda que a Palavra de Deus nos coloca sempre diante de um Deus que fez aliança com a humanidade e, portanto, nos convida a “abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-nos mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos.” (n.3) Este modo novo de ver cada ser humano pode gerar o respeito que é o único caminho “possível para romper a espiral da vingança e empreender o caminho da esperança.” (idem)

Assim, a passagem do Evangelho que reproduz o diálogo entre Pedro e Jesus sobre quantas vezes se deve perdoar (Mt 18, 21-22) é um guia seguro para que aprendamos a viver no perdão, o que “aumenta a nossa capacidade de nos tornarmos mulheres e homens de paz”. Seguindo essa linha de pensamento o Papa diz que “o que é verdade em relação à paz na esfera social, é verdadeiro também no campo político e econômico […] nunca haverá paz verdadeira, se não formos capazes de construir um sistema econômico mais justo.” E, citando Bento XVI, lembra que “a vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se atue não só sobre a melhoria das transações fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade econômica caraterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão” (n. 3).

A fraternidade, portanto, é o fundamento daquele esforço comum para a promoção da tão necessária cultura da paz. Além disso, o seu fomento está ao nosso alcance no exercício cotidiano da acolhida do outro, da prática do perdão e da busca de meios que favoreçam os mais esquecidos porque vemos neles a presença do mistério de Deus que assumiu o rosto humano sofredor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste. 1 – CNBB