Um livro para tempos de crise

setembro 12, 2020 / no comments

Um livro para tempos de crise

As crises de diversos tipos acompanham a humanidade ao longo de toda a história conhecida. Em nível pessoal cada ser humano faz a experiência de atravessar momentos críticos com o passar dos anos. Gosto de lembrar que a palavra crise, oriunda do grego, na sua etimologia tem um caráter positivo. Ela se refere a critério, juízo, decisão. Toda crise revela fragilidades e pede decisões a partir de referências que podem iluminar as escolhas.

O Deuteronômio, um dos Livros Sagrados do Antigo Testamento, foi escrito precisamente num momento importante da história de Israel, onde Deus, na sua bondade, como guia do povo, recorda, através de Moisés, as grandes referências que Israel tinha para continuar com êxito sua trajetória histórica como nação escolhida, povo eleito.

O contexto em que se situa este livro bíblico é o do final da travessia do deserto, após a saída do Egito, no processo de libertação de Israel. Muitos dos que presenciaram o início da longa viagem e viram as maravilhas de Deus no Sinai já haviam morrido. Uma nova geração surgira e terá que ocupar a terra prometida, com os desafios que isso suporá, mas o desafio maior é o de não perder o sentido da história do povo e das consequências da escolha que Deus fizera dele.

Nesta situação nova faz-se necessário oferecer de novo as bases que fizeram deste povo uma nação (Deuteronômio literalmente significa “segunda Lei”). Israel, como nação, não podia compreender-se fora da relação com Deus e da Aliança firmada no Sinai. Nela, Deus e o povo haviam feito um pacto: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. Por isso, as palavras centrais do livro são aquelas do capítulo 6º: “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor! Portanto, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.” (Dt 6,4-5).

Deus tinha dado provas do seu amor pelos hebreus e, através dos Mandamentos, eles demonstrariam sua gratidão e fidelidade Àquele que se interessou por eles e os tirou das mãos do prepotente. Esta experiência marcará para sempre a história de Israel e também o seu estilo de relações com o próprio Deus, com o próximo e com a criação.

Seguir os caminhos de Deus significa escolher a vida: “ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a ele.” (Dt 30, 19-20). Portanto, é dentro da perspectiva da experiência fundante que Israel teve com Deus que se pautará também a própria vida em sociedade, reconhecendo no semelhante a sua dignidade de escolhido e amado por Deus.

Assim, o quinto livro da Bíblia conjuga tanto a renovação do culto e das relações com Javé  quanto as normas que devem ser observadas nas relações sociais, como por exemplo, a libertação dos escravos, a partilha das terras, a eliminação de abusos por parte dos poderosos e as relações econômicas entre os indivíduos, a fim de proteger os desprotegidos, amparar os pobres e abandonados.

Neste mês de setembro, mês que tradicionalmente no Brasil dedicamos à Bíblia, temos a proposta de estudar e rezar o livro do Deuteronômio. Este livro assumiu grande importância para os cristãos. Para se ter uma ideia ele é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento.

O tema escolhido para este ano, “abre tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11), nos compromete com uma leitura que nos ajude a encontrar em Deus o fundamento principal de nossas relações com o próximo. Ao mesmo tempo, a reflexão inspire sempre mais as nossas relações sociais e o nosso compromisso de cristãos conscientes do nosso papel na sociedade para a construção de uma nova civilização, a civilização do amor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Ainda há espaço para o perdão?

setembro 7, 2020 / no comments

Ainda há espaço para o perdão?

 

Frequentando as redes sociais e sites de notícias fico cada vez mais impressionado pelo teor de alguns comentários que costumam acompanhar as publicações, manifestando a opinião dos leitores.

É verdade que hoje os meios de comunicação permitem uma interação que pode enriquecer os fatos narrados e as opiniões apresentadas, ao mesmo tempo que representam uma oportunidade de se ver a questão a partir de outros pontos de vista.

Acompanhando notícias de todos os tipos, desde as crônicas do dia a dia, passando pelas informações sobre os esportes, a administração pública, o sistema judiciário, a religião, etc., tudo fica exposto ao crivo dos “juízes”, os mais diversos.

O tom de muitas colocações, às vezes, denota a ausência de palavras que lembrem que, entre tantas outras possibilidades de posturas, também existe aquela do perdão. Há muito sabor amargo em tantas exposições e, por isso, me pergunto se na nossa sociedade ainda há espaço para o perdão.

Quando falo de perdão é preciso entender que aqui não se pretende relativizar o valor moral dos equívocos cometidos. A reta razão exige que as coisas sejam valoradas conforme o juízo moral ou ético que lhes correspondem. Lembro-me de um dos meus professores que dizia que era preciso chamar o mal de mal e o bem de bem. As coisas têm em si mesmas um valor que independe imediatamente do sujeito que a valoriza.

Há uma forte presença de uma visão pessimista sobre a realidade que pode gerar muita desesperança ao nosso redor. Em parte, acredito que essa tendência pode provir de um certo esvaziamento de uma visão cristã da realidade. Por outro lado, é verdade também que os discípulos de Jesus, que receberam do Mestre o mandamento novo do amor, nem sempre damos aquele testemunho que corrobora para o bom êxito do anúncio da mensagem. Mas este fato, que faz parte da fragilidade do ser humano, não tira o valor daquilo que Jesus ensinou. No cristianismo se lembra que há sempre a possibilidade de pedir perdão, recomeçar e que a graça de Deus é capaz de restaurar o ser humano a partir de dentro.

Muitas vezes o mal cometido exigirá uma punição que deverá ser cumprida. Mas mesmo assim se faz necessário o perdão tanto para si próprio como para alguém que nos ofendeu. O perdão abre a realidade humana a novas possibilidades, que muitas vezes se apresentam como inesperadas.

Vem-me à memória a imagem de uma visita que, em 1983, o Papa João Paulo II, fez ao autor do atentado que quase o matou em 1981. A aproximação de ambos, a conversa quase ao pé do ouvido entre os dois sentados, um em frente ao outro, parecia descrever um ritual que surpreendeu o mundo. Este mesmo homem, Ali Agca, 31 anos depois do encontro, entrou na Basílica de São Pedro no Vaticano para depositar flores junto do túmulo do Papa que o abraçou e perdoou. Na ocasião ele declarou estar felicíssimo por estar realizando aquele gesto de estima e agradecimento.

A insistência do Papa Francisco pelo fomento de uma cultura do encontro é expressão da necessidade de uma urgente revisão das atitudes que caracterizam tantos relacionamentos em nosso mundo. Os fatos da atualidade parecem sugerir que é hora de se redescobrir o perdão também como fator de reconstrução da história presente. Revisitar o Evangelho sob a ótica do perdão poderá nos ajudar a encontrar caminhos para as encruzilhadas de hoje. A luz não está no fim do túnel. Ela nos rodeia e nos pede abrir espaço dentro do coração que é o lugar por excelência da decisão de perdoar.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.