Vida: dom e compromisso

outubro 4, 2020 / no comments

Vida: dom e compromisso

 

O bom e velho Jó, personagem conhecido no Antigo Testamento pelos duros revezes que enfrentou, disse acertadamente que a vida do ser humano nesta terra é luta. Uma afirmação comprovada na própria pele,na sua experiência de justo sofredor.

A atual pandemia da Covid 19 tem sido ocasião, tantas vezes, de recordar a fragilidade das nossas seguranças e, ao mesmo tempo, descobrir a importância de viver a vida com um sentido que supere o drama da morte. A fé sempre traz tantas luzes para encher de razão a vida e tudo o que nela se enfrenta. Mas a fé não é um anestésico. Ela nos coloca diante de outra realidade maior até mesmo do que nós e apresenta suas garantias para que não acreditemos em vão.

Essa tomada de consciência pode servir para iluminar situações que enfrentamos e que nos surpreendem em alguns momentos de nossa história pessoal. Quantas coisas nos convocam para uma luta pela vida, para valorizá-la pessoalmente, mas não só. Valorizar a própria vida tem um vínculo direto com a valorização da vida do outro. Eu sou alguém sempre em referência a uma outra pessoa. Esta é a beleza e, ao mesmo tempo, o mistério que envolve toda vida humana. Um outro me explica: sou filho, irmão, neto, sobrinho, amigo, etc. de alguém. Ao contrário do que pensava Sartre, o outro não é o inferno, mas sim a possibilidade de que eu seja eu mesmo.

Estes dias, alguém que perdeu a mãe recentemente me dizia que a recordação de como ela tinha vivido a vida, o consolava naquela hora de dor. Afirmou com simplicidade que sua mãe viveu com intensidade, colocando-se inteiramente nas coisas que lhe correspondia viver.

Às vezes, diante de certas situações somos tentados a perguntar: isso é vida? Como se aquela situação fosse só uma negação.Não quero com isso negar que há tantos dramas difíceis de enfrentar na vida de tantas pessoas. Mas penso que a experiência de muita gente em situações semelhantes acaba por mostrar que a vida sai mais valorizada até mesmo de situações que parecem contradizê-la. Certa vez li um livro cujo título era muito sugestivo: “Tudo tem sentido”. Para dizer que tudo pode ser integrado e aproveitado para sairmos melhor de cada situação.

Valorizar a vida humana desde a sua fecundação até o seu fim natural é a proposta da Semana Nacional da Vida, entre os dias 1º a 7 de outubro que tem como tema a vida: dom e compromisso.No dia 8 celebraremos o dia do nascituro. Uma vida que vem à luz é um sinal de renovação e de tantas possibilidades pessoais e para toda a comunidade humana. Celebrar o dia do nascituro nos compromete na defesada vida mais frágil, desde a criança que está para nascer como aquela que não tem um ambiente favorável para o seu desenvolvimento digno e, enfim, toda e qualquer expressão de ameaça à vida humana.

O Papa João Paulo II, em muitas ocasiões denunciou um ambiente que respira uma cultura de morte. Infelizmente vemos como se espalhava, especialmente no Ocidente, este desprezo à vida humana e que também se expressa pelo desprezo ao próprio ambiente que torna possível a vida.

O Papa Francisco hoje assinou em Assis uma Carta sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Mais uma vez ele se serve do testemunho do pobrezinho de Assis “que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne”.

Que o saber-nos todos irmãos (assim se chama a Carta Encíclica do Papa), nos comprometa mais com a luta pela vida, especialmente em defesa dos mais frágeis.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu (RJ) e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

O sentido da vida e o Evangelho

setembro 19, 2020 / no comments

O sentido da vida e o Evangelho

 

O “setembro amarelo”, com a sua proposta de saúde e equilíbrio mental,é sempre uma boa provocação para perguntar-nos sobre o sentido da vida.

Viktor Frankl (+1997), psiquiatra austríaco sobrevivente de Auschwitz e fundador da logoterapia (terapia do sentido da vida), entendeu, na dura experiência do campo de concentração que, mais do que sede de poder (Adler) ou sede de satisfação das pulsões (Freud), o ser humano é sede de sentido. E quando isso não é atendido, a tendência é adoecer. A falta de sentido, segundo ele, seria a grande ameaça que estaria adoecendo as pessoas do nosso tempo.

O fundador da logoterapia, ao citar Nietzsche,lembrava que “quem tem um porquê viver, suporta o como”. A pauta das nossas escolhas falado sentido que atribuímos à existência, mesmo inconscientemente. Somos movidos pelo sentido.

A religião, fazendo parte da experiência humana desde os primórdios, é expressão da transcendência do sentido da vida. Ao oferecer respostas à dor, ao sofrimento eà morte, a experiência religiosa contribui para que a vida se dilate a horizontes que respondem à sede de infinito que trazemos dentro de nós. A visão materialista não é capaz de satisfazer, pois sufoca o coração humano que tende ao infinito.

Lançando um olhar simples para o Evangelho, vemos que Jesus, na sua mensagem, oferece um sentido maior à vida, apresentando-se Ele mesmo como “caminho, verdade e vida”. O encontro com Cristo no percurso da história encheu de sentido a vida de muitas pessoas que, por sua vez, compartilharam este sentido com outros.

Nada mais começar sua atividade pública, Ele pregou sobre a oportunidade daquele tempo em que lhe correspondia inaugurar. Com Ele chegou o “tempo da graça”, o kairós, em linguagem bíblica.

Trata-se de uma realidade que não se impõe, levando em grande conta a liberdade de cada um. Para isso, convidava as pessoas a acolherem com fé a sua mensagem através da experiência da “metanoia”. O sentido desta palavra grega,que normalmente traduzimos como conversão,indica mudança de mentalidade, de direcionamento. A cada tempo novo correspondem novas exigências e novos aprendizados para entrar na posse do sentido que sempre é o que move o ser humano e é maior que ele.

A direção indicada por Jesus é o Reino de Deus que, com Ele, acaba de chegar.

Sobre este Reino, ao longo da história muito se escreveu e muita opinião foi dada. Mas aqui interessa-nos simplesmente lembrar que o reinado de Deus é o senhorio de Jesus Cristo. Entrar na sua lógica de amor a Deus, ao próximo e nas consequências que ela supõe.

Assumir o reinado de Deus como direção da vida significa colocar a pessoa de Jesus Cristo no lugar que lhe cabe, ou seja, no centro da própria existência. É verdade que isso supõe a fé na sua pessoa. Por isso, junto com o convite à conversão, Jesus pede que se creia na Boa Nova, na força transformadora da sua mensagem.

Com a distância de 21 séculos nós podemos certamente dizer que a mensagem de Jesus fez muito pelo mundo através de muitos discípulos seus que se comprometeram de verdade com a sua Palavra. Hoje, com muita facilidade apontam-se erros do presente e do passado. Se quisermos ser justos temos que ir além e, com honestidade intelectual, ser capazes de reconhecer que a fé cristã contribui para um mundo cheio de perspectivas positivas para a humanidade. Basta lembrar o valor do conceito de pessoa e de sua dignidade e a consequente promoção humana que isso supôs. Quantas iniciativas a favor da humanidade foram inspiradas na fé cristã: os hospitais, as universidades, o aprofundamento no conceito de justiça conjugado com a misericórdia, o direito à liberdade de consciência acima de qualquer regime político e contra as decisões da maioria, a contribuição para o fortalecimento das culturas e a sua purificação daquilo que diminui a dignidade da pessoa, a reflexão ecológica, etc.

Em um mundo de tantas vozes e incertezas, as testemunhas do Evangelho vivido fazem ressoar o apelo simples de Jesus: convertam-se e creiam na Boa Nova.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.