O sentido da vida e o Evangelho

setembro 19, 2020 / no comments

O sentido da vida e o Evangelho

 

O “setembro amarelo”, com a sua proposta de saúde e equilíbrio mental,é sempre uma boa provocação para perguntar-nos sobre o sentido da vida.

Viktor Frankl (+1997), psiquiatra austríaco sobrevivente de Auschwitz e fundador da logoterapia (terapia do sentido da vida), entendeu, na dura experiência do campo de concentração que, mais do que sede de poder (Adler) ou sede de satisfação das pulsões (Freud), o ser humano é sede de sentido. E quando isso não é atendido, a tendência é adoecer. A falta de sentido, segundo ele, seria a grande ameaça que estaria adoecendo as pessoas do nosso tempo.

O fundador da logoterapia, ao citar Nietzsche,lembrava que “quem tem um porquê viver, suporta o como”. A pauta das nossas escolhas falado sentido que atribuímos à existência, mesmo inconscientemente. Somos movidos pelo sentido.

A religião, fazendo parte da experiência humana desde os primórdios, é expressão da transcendência do sentido da vida. Ao oferecer respostas à dor, ao sofrimento eà morte, a experiência religiosa contribui para que a vida se dilate a horizontes que respondem à sede de infinito que trazemos dentro de nós. A visão materialista não é capaz de satisfazer, pois sufoca o coração humano que tende ao infinito.

Lançando um olhar simples para o Evangelho, vemos que Jesus, na sua mensagem, oferece um sentido maior à vida, apresentando-se Ele mesmo como “caminho, verdade e vida”. O encontro com Cristo no percurso da história encheu de sentido a vida de muitas pessoas que, por sua vez, compartilharam este sentido com outros.

Nada mais começar sua atividade pública, Ele pregou sobre a oportunidade daquele tempo em que lhe correspondia inaugurar. Com Ele chegou o “tempo da graça”, o kairós, em linguagem bíblica.

Trata-se de uma realidade que não se impõe, levando em grande conta a liberdade de cada um. Para isso, convidava as pessoas a acolherem com fé a sua mensagem através da experiência da “metanoia”. O sentido desta palavra grega,que normalmente traduzimos como conversão,indica mudança de mentalidade, de direcionamento. A cada tempo novo correspondem novas exigências e novos aprendizados para entrar na posse do sentido que sempre é o que move o ser humano e é maior que ele.

A direção indicada por Jesus é o Reino de Deus que, com Ele, acaba de chegar.

Sobre este Reino, ao longo da história muito se escreveu e muita opinião foi dada. Mas aqui interessa-nos simplesmente lembrar que o reinado de Deus é o senhorio de Jesus Cristo. Entrar na sua lógica de amor a Deus, ao próximo e nas consequências que ela supõe.

Assumir o reinado de Deus como direção da vida significa colocar a pessoa de Jesus Cristo no lugar que lhe cabe, ou seja, no centro da própria existência. É verdade que isso supõe a fé na sua pessoa. Por isso, junto com o convite à conversão, Jesus pede que se creia na Boa Nova, na força transformadora da sua mensagem.

Com a distância de 21 séculos nós podemos certamente dizer que a mensagem de Jesus fez muito pelo mundo através de muitos discípulos seus que se comprometeram de verdade com a sua Palavra. Hoje, com muita facilidade apontam-se erros do presente e do passado. Se quisermos ser justos temos que ir além e, com honestidade intelectual, ser capazes de reconhecer que a fé cristã contribui para um mundo cheio de perspectivas positivas para a humanidade. Basta lembrar o valor do conceito de pessoa e de sua dignidade e a consequente promoção humana que isso supôs. Quantas iniciativas a favor da humanidade foram inspiradas na fé cristã: os hospitais, as universidades, o aprofundamento no conceito de justiça conjugado com a misericórdia, o direito à liberdade de consciência acima de qualquer regime político e contra as decisões da maioria, a contribuição para o fortalecimento das culturas e a sua purificação daquilo que diminui a dignidade da pessoa, a reflexão ecológica, etc.

Em um mundo de tantas vozes e incertezas, as testemunhas do Evangelho vivido fazem ressoar o apelo simples de Jesus: convertam-se e creiam na Boa Nova.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Um livro para tempos de crise

setembro 12, 2020 / no comments

Um livro para tempos de crise

As crises de diversos tipos acompanham a humanidade ao longo de toda a história conhecida. Em nível pessoal cada ser humano faz a experiência de atravessar momentos críticos com o passar dos anos. Gosto de lembrar que a palavra crise, oriunda do grego, na sua etimologia tem um caráter positivo. Ela se refere a critério, juízo, decisão. Toda crise revela fragilidades e pede decisões a partir de referências que podem iluminar as escolhas.

O Deuteronômio, um dos Livros Sagrados do Antigo Testamento, foi escrito precisamente num momento importante da história de Israel, onde Deus, na sua bondade, como guia do povo, recorda, através de Moisés, as grandes referências que Israel tinha para continuar com êxito sua trajetória histórica como nação escolhida, povo eleito.

O contexto em que se situa este livro bíblico é o do final da travessia do deserto, após a saída do Egito, no processo de libertação de Israel. Muitos dos que presenciaram o início da longa viagem e viram as maravilhas de Deus no Sinai já haviam morrido. Uma nova geração surgira e terá que ocupar a terra prometida, com os desafios que isso suporá, mas o desafio maior é o de não perder o sentido da história do povo e das consequências da escolha que Deus fizera dele.

Nesta situação nova faz-se necessário oferecer de novo as bases que fizeram deste povo uma nação (Deuteronômio literalmente significa “segunda Lei”). Israel, como nação, não podia compreender-se fora da relação com Deus e da Aliança firmada no Sinai. Nela, Deus e o povo haviam feito um pacto: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. Por isso, as palavras centrais do livro são aquelas do capítulo 6º: “Ouve, ó Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor! Portanto, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força.” (Dt 6,4-5).

Deus tinha dado provas do seu amor pelos hebreus e, através dos Mandamentos, eles demonstrariam sua gratidão e fidelidade Àquele que se interessou por eles e os tirou das mãos do prepotente. Esta experiência marcará para sempre a história de Israel e também o seu estilo de relações com o próprio Deus, com o próximo e com a criação.

Seguir os caminhos de Deus significa escolher a vida: “ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a ele.” (Dt 30, 19-20). Portanto, é dentro da perspectiva da experiência fundante que Israel teve com Deus que se pautará também a própria vida em sociedade, reconhecendo no semelhante a sua dignidade de escolhido e amado por Deus.

Assim, o quinto livro da Bíblia conjuga tanto a renovação do culto e das relações com Javé  quanto as normas que devem ser observadas nas relações sociais, como por exemplo, a libertação dos escravos, a partilha das terras, a eliminação de abusos por parte dos poderosos e as relações econômicas entre os indivíduos, a fim de proteger os desprotegidos, amparar os pobres e abandonados.

Neste mês de setembro, mês que tradicionalmente no Brasil dedicamos à Bíblia, temos a proposta de estudar e rezar o livro do Deuteronômio. Este livro assumiu grande importância para os cristãos. Para se ter uma ideia ele é o livro do Antigo Testamento mais citado nos escritos do Novo Testamento.

O tema escolhido para este ano, “abre tua mão para o teu irmão” (Dt 15,11), nos compromete com uma leitura que nos ajude a encontrar em Deus o fundamento principal de nossas relações com o próximo. Ao mesmo tempo, a reflexão inspire sempre mais as nossas relações sociais e o nosso compromisso de cristãos conscientes do nosso papel na sociedade para a construção de uma nova civilização, a civilização do amor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.