Renovar a visão do Batismo

janeiro 9, 2021 / no comments

Renovar a visão do Batismo

 

A história da Igreja testemunha que, à medida que o cristianismo foi se entranhando na vida social e passou a ser uma “religião de maiorias”, obtendo no século IV um certo status de “religião do Império”, percebeu-se um certo esfriamento quanto ao entusiasmo da era dos mártires. Tertuliano, no século III, afirmou que “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Esta foi, sem dúvida, uma experiência confirmada ao longo dos séculos, pois o Espírito Santo, de tempos em tempos, faz soprar sobre os seguidores de Cristo o vento da renovação necessária para que a fé cristã seja sempre estímulo de caminhos novos para a humanidade.

Desde o início, viu-se no catecumenato, ou seja, nos passos iniciais do conhecimento e da adesão a Cristo através dos sacramentos do batismo, da eucaristia e da crisma, o ponto de partida do compromisso de vida com a fé que ilumina toda a vida pessoal e social do cristão.

Como lembrou São João Paulo II, “perguntar a um catecúmeno: ‘Queres receber o Batismo?’ significa ao mesmo tempo perguntar-lhe: ‘Queres tornar-te santo?’. Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermão da Montanha: ‘Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste’ (Mt 5,48) (Novo MillenioIneunte, 31).Por isso, no mesmo lugar ele dizia que “se o Batismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do seu Espírito, seria um contrassenso contentar-se com uma vida medíocre, pautada por uma ética minimalista e uma religiosidade superficial.”

Celebrando neste domingo o Batismo de Jesus, temos a oportunidade de refletir sobre o fato inaugural da vida pública de Cristo, marcada pela força do seu ensinamento e dos milagres que realizava. É ocasião propícia também para pensar no nosso batismo e no compromisso radical que nele assumimos.

Temos que reconhecer, com certo pesar, a tendência a reduzi-lo a um “acontecimento social”. É verdade que o Batismo também tem essa dimensão, mas o problema é quando queremos aplicar a ele as mesmas exigências que têm as festas organizadas por nós, de acordo com o nosso parecer. Ora, o Batismo é um dom que se recebe, que se acolhe da parte de Deus por meio da Igreja. Portanto, há certas condições que não dependem simplesmente do nosso querer, mas que representam o nosso compromisso com Deus e com a comunidade eclesial.

Por outro lado, há décadas existe na Igreja um empenho de renovação acerca do modo como este sacramento é visto e administrado em nossas Igrejas. Hoje se faz o esforço da implantação de uma visão mais ampliada, relacionando-o com a Eucaristia e a Confirmação (Crisma), através da assim chamada Iniciação Cristã e, consequentemente, da vida em comunhão na Igreja.

Tudo isso indica uma necessidade de atualização da visão que desenvolvemos da prática desse sacramento com o passar do tempo. É um desafio que se coloca aos ministros da Igreja, mas também a todos os fiéis, tanto os que estão mais próximos, participando com frequência da comunidade eclesial, quanto os que dela só se aproximam esporadicamente, por ocasião da celebração de alguns sacramentos.

Nunca este sacramento pode ser visto como simplesmente o modo de aumentar o número dos fiéis. Como no início do cristianismo, a prática da recepção do Batismo supõe a confirmação de que se quer definitivamente seguir a Jesus Cristo, com o radicalismo que isso supõe de santidade de vida e de compromisso com os irmãos, por amor.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB

Referências para um ano novo melhor

dezembro 31, 2020 / no comments

Referências para um ano novo melhor

O fim do ano nos motiva a agradecer e também a fazer uma retrospectiva pessoal e social do ano que termina. O passar dos anos nos faz perguntar sobre “quem estou me tornando?”. O modo como respondemos aos acontecimentos revela muito de nós.

O grande psiquiatra austríaco, Viktor Frankl (1905-1997), fundador da terceira escola vienense de psicoterapia, a Logoterapia e a Análise Existencial, depois de ter passado e sobrevivido a quatro campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, testemunhou que dentro dos campos viu homens se transformarem em anjos e outros, em demônios. Tinha clara convicção de que o espaço da liberdade que fica preservado, mesmo nas situações mais extremas. As circunstâncias podem condicionar, mas nunca são determinantes.

Ao findar um ano somos colocados diante de nós mesmos, das pessoas que estão perto de nós e também do momento histórico difícil que nos corresponde viver. Como dizia Ortega y Gasset: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

Responder à pergunta sobre “quem eu estou me tornando diante dos fatos que vivo”, me ajuda a reconhecer que minhas escolhas pessoais não são indiferentes.Elas me fazem e me tornam responsável perante os outros. No entanto, para responder com sinceridade é preciso confrontar-se com alguém, com uma referência.

A referência fundamental da vida é Deus. Um Deus que, em Cristo, se revelou, falou sobre si e sobre o ser humano e se mostrou autêntico, próximo, bondoso e amigo de toda pessoa humana. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes 22, lembra que “Cristo revela o homem ao próprio homem”. Ele viveu nossa vida com seus dramas e se apresentou como caminho, verdade e vida.

Terminando um ano e começando outro buscamos saídas diante das encruzilhadas.Há escolhas equivocadas. Escolher a morte, por exemplo, como no caso da decisão recente do parlamento argentino a favor do aborto, nunca pode dar esperança à humanidade, ao contrário, é presságio de dias piores, pois a resposta violenta é sempre destrutiva e a morte do inocente indefeso é a pior das violências. Para sair da crise antropológica que estamos enfrentando, a referência a Cristo traz luzes sempre novas. As vacinas para o covid19 representam um ponto de luz, mas não podem oferecer solução ao drama da existência humana tão acentuado nestes tempos. Afinal, a vida humana não tem a ver só com saúde física, mas também com relações, sentido, amor, sacrifício, transcendência, Deus, etc.

Para nós cristãos, a fé aponta para Cristo como esperança certa de uma humanidade nova, “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14). Nele somos filhos de Deuse, consequentemente, irmãos uns dos outros. Encontrar Deus, a si e aos outros é determinante para fazer de cada tempo uma nova oportunidade para a humanidade.

As palavras de São Paulo VI, na sua carta comemorativa dos 80 anos da encíclica Rerum Novarum são propositivas: “Convém que cada um se examine para ver o que fez até agora e o que deve ainda fazer. Não basta recordar princípios gerais, manifestar propósitos, condenar as injustiças graves, proferir denúncias com certa audácia profética; tudo isso não terá peso real se não se fizer acompanhar em cada homem de uma tomada de consciência mais viva da sua própria responsabilidade e de uma ação efetiva. É demasiado fácil lançar sobre os outros a responsabilidade das injustiças presentes, se ao mesmo tempo não se percebe que todos somos igualmente responsáveis, e que, portanto, a primeira das exigências é a conversão pessoal” (Octagesima adveniens, n. 48).

Terminar um ciclo e começar outro representam uma bela oportunidade de revisão do caminho percorrido e de propósitos concretos para a conversão pessoal, tão necessária para uma mudança em nível global. Com a esperança de que o Senhor caminha conosco queremos começar o novo ano e empenhar-nos pessoalmente na construção do mundo sonhado por Deus. Feliz Ano Novo!

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.