Entre o vírus e a fé

março 15, 2020 / no comments

“É feliz quem a Deus se confia”, assim reza o Salmo 1, e nessa confiança gostaríamos de viver, em meio às alegrias e dores da vida. Quem tem fé sabe que pode se apoiar em outra realidade mais consistente. Embora a fé verse sobre coisas que os olhos não podem ver, isso não significa que elas não sejam até mais reais que um vírus que se alcança a ver apenas graças a recursos de alta tecnologia.

A atual pandemia do Covid-19 (coronavírus) tem nos colocado diante da realidade da fragilidade humana. Muitos acontecimentos do nosso tempo nos têm feito confrontar a insegurança do viver. Isso acontece desde que o mundo é mundo. Lembremos, por exemplo, as grandes pestes, que até o século passado dizimavam milhares de pessoas em pouco tempo. Com o avanço da tecnologia esperávamos poder superar definitivamente essas “surpresas” nefastas que marcam de luto a história humana. E eis que novas ameaças surgem, ou ressurgem, e temos que aprender a lutar de novo contra os inimigos da vida.

Apesar das autoridades insistirem em não se criar um clima de pânico, as pessoas normalmente reagem com apreensão diante da incerteza que uma situação assim traz. Muitas das nossas reações têm a ver não apenas com o temor da enfermidade em si mesma, mas do que ela nos revela. Ela nos coloca diante do fato de que a vida de todo ser humano é frágil e o seu cuidado não é autônomo. Ninguém pode se cuidar sozinho. Há uma sadia dependência entre os seres humanos, onde uns sustentam a vida dos outros. Mas existe uma outra dependência radical que na sociedade secularizada em que vivemos, temos dificuldade de acolher. Nossa vida depende de Deus, está sempre em suas mãos. Nossa vida não é só nossa, ela é dom. Recebemo-la de nossos pais, mas radicalmente a recebemos de Deus. A confiança em Deus gera a paz, pois os caminhos da providência divina passam pelos caminhos da humanidade, com suas lutas e dores.

O profeta Isaías, no século VII a.C., lembrava aos seus ouvintes que “a carne é como a erva e toda a sua glória dura como a flor do campo” (40, 6). Ao longo de toda a história o ser humano é confrontado com essa realidade e não tem como escapar dela. É verdade que se pode tentar viver sem se questionar sobre isso, mas alguns acontecimentos sempre nos levam a refletir sobre o tema. O momento atual é uma ocasião propícia para que nos detenhamos na importante reflexão sobre o sentido da nossa vida: vivemos para quem, vivemos para quê?

O Deus em quem acreditamos e que se revelou em Jesus Cristo é o Deus da vida. São muito oportunas as palavras do Papa Francisco, que constituem o centro da sua mensagem dirigida aos jovens na Exortação Apostólica a eles dirigida: “Cristo vive e te quer vivo” (Christus vivit, 1). O Deus em quem cremos quer a vida das pessoas e, por isso, os cristãos sempre se empenham na defesa da vida em todos os seus âmbitos: desde a fecundação até o seu fim natural, valorizando também tudo o que é vida, pois é dom de Deus para uma humanidade feliz.

A atual crise sanitária pede aos cristãos atitudes de sempre, mas que podem ser assumidas como compromissos novos. Primeiramente, a confiança em Deus, que cuida sempre de nós. A oração deve estar presente neste momento. Em nossas assembleias litúrgicas, na devoção da Via Sacra, nos encontros da Campanha da Fraternidade e na oração pessoal não pode faltar o clamor a Deus, para que nos livre do mal e nos ajude a encontrar os caminhos da cura. A solidariedade para com os sofredores é outra atitude que deve estar ainda mais presente. E uma solidariedade que nos comprometa também como cidadãos diante das autoridades, para que o cuidado da saúde seja uma das prioridades nas políticas públicas. Além disso, o sentido de responsabilidade diante dos irmãos nos leva a estar atentos às indicações que vêm da parte das autoridades para estender o cuidado a todos.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

 

Igreja missionária e servidora no espírito da Quaresma

março 1, 2020 / no comments

 

Na última quarta-feira, 26 de fevereiro, demos início, junto com toda a Igreja, à Quaresma, tempo forte de conversão e da graça de Deus, marcado pela oração, a penitência e a caridade.

Mais uma vez somos convidados a reviver o mistério da Páscoa do Senhor que, como nos lembra o Papa Francisco, em sua mensagem quaresmal para este ano, “não é um acontecimento do passado: pela força do Espírito Santo é sempre atual e nos permite contemplar e tocar com fé a carne de Cristo em tantas pessoas que sofrem.”

Em comunhão com toda a Igreja no Brasil queremos viver, como gesto concreto pessoal e comunitário de caridade fraterna, a Campanha da Fraternidade deste ano.

Com o tema “Fraternidade e vida: dom e compromisso” e o lema, “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, somos chamados a confrontar nosso testemunho cristão à luz do exemplo do Bom Samaritano do Evangelho (Lc 10, 25-37), buscando assumir o espírito da Quaresma com toda a sua riqueza espiritual.

Fizemos a opção de celebrar a abertura da Campanha da Fraternidade 2020 nos 10 Regionais que compõem a Diocese de Nova Iguaçu. Queremos assim renovar o compromisso de ser Igreja missionária e samaritana, que está sempre em saída, e se faz presente e próxima dos inúmeros sofredores deste tempo, em nossa Baixada, para oferecer-lhes a compaixão e o cuidado do olhar de Cristo, pois “somente contemplando o mundo com os olhos de Deus, é possível perceber e acolher o grito que emerge das várias faces da pobreza e da agonia da criação” (DGAE 2019-2023, n. 102).

As palavras de Cristo, “a mim o fizeste” (Mt 25, 40), sempre nos provocam a buscar identificar o seu rosto nos pobres e descartados que se encontram perto de nós, pois o Senhor quis identificar-se com eles. Em palavras do Papa Francisco, “esquivar-se dessa identificação equivale a ludibriar o Evangelho e diluir a Revelação[…]Os pobres precisam de nossas mãos para se reerguer, dos nossos corações para sentir de novo o calor do afeto, da nossa presença para superar a solidão (Mensagem para o 3º Dia Mundial dos Pobres).

Ao terminar a parábola do Bom Samaritano, Jesus convida os seus seguidores a fazerem o mesmo que ele fez (Lc 10, 37). Nossa ação pastoral precisa ser concreta. Por isso, na Diocese fizemos a escolha de priorizar a atenção e o cuidado com crianças, adolescentes e jovens. Queremos também ao longo desse ano identificar, mapear, valorizar, integrar as inúmeras ações em prol da vida, realizadas em nosso território, pois são sinais claros da presença solidária e fraterna da Igreja que assume a vida como dom e compromisso.

Desejo que nos empenhemos de verdade para realizar com espírito de fé e caridade a Campanha da Fraternidade, também através da criação do maior número possível de grupos de reflexão e oração, não apenas nas nossas comunidades e casas, mas também em outros ambientes (escolas, hospitais, presídios, comércios, etc) onde mais pessoas podem ser alcançadas pelo anúncio do Evangelho e pelo nosso testemunho.

Unidos na oração, supliquemos ao Senhor, com Nossa Senhora da Piedade, que nos ensine a “sentir a verdadeira compaixão expressa no cuidado fraterno, próprio de quem reconhece no próximo o rosto do Filho de Deus” (Oração da CF 2020).

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.