Uma pergunta incômoda

agosto 23, 2020 / no comments

Uma pergunta incômoda

Colocar-se perguntas é próprio do ser humano e trata-se de uma atividade que não termina nunca. A própria vida se encarrega de provocar a reflexão. Há perguntas cujas respostas podem orientar para sempre a vida de uma pessoa. Não é diferente na experiência religiosa. A religião, para além de questão sentimental, é uma escolha que dá sentido e orientação à própria existência. A capacidade de se questionar é um pressuposto indispensável para alguém que decide percorrer o caminho do cristianismo. A liturgia da Missa deste domingo ilustra isso através de um diálogo que Jesus estabelece com os seus discípulos mais achegados (Mt 16, 13-20).

Jesus se dirige à região de Cesaréia de Filipe com o grupo dos Doze que o seguia. Trata-se de lugar distante do contexto habitual, uma área periférica do ponto de vista religioso, um ambiente diferente onde prevalecia o jeito romano de ser. Ali, Jesus lhes pergunta de forma genérica a opinião das pessoas sobre ele e, a seguir, questiona: “E para vocês, quem sou eu?”

A vocação cristã, por mais popular que seja, nunca dispensa a decisão pessoal. É preciso poder dizer quem é Jesus para mim. E isso não se responde apenas uma única vez na vida, por exemplo, no momento do batismo ou da crisma. Mas é uma resposta que as próprias circunstâncias exigem. O encontro com Cristo é atualizado nas vicissitudes da história e se atualiza quando nos deixamos alcançar por ele, em meio aos acontecimentos de nossa vida pessoal e dos movimentos da história. Por isso, o seguimento de Cristo é sempre atual e tem sempre alguma novidade a trazer, mesmo quando parece que não é possível nada de novo em determinados momentos.

O que aqui falo não se trata de uma bela teoria, mas a própria caminhada dos cristãos ao longo desses 21 séculos demonstra isso. É verdade que não faltam equívocos. E eles acontecem quando o discípulo do Senhor se afasta de sua presença e da proposta que ele veio trazer no seu Evangelho. Assim, o caminho de discípulo tem sempre em Cristo uma referência nova e iluminadora para todas as circunstâncias. Uma vez que o Verbo de Deus se encarnou num momento concreto, numa realidade cultural também concreta, a sua presença está atuante ao longo dos séculos, graças à sua Ressurreição.

Por isso, era decisivo para os apóstolos, naquele momento ter uma resposta à pergunta incômoda que Jesus lhes fazia.

que se dá por meio do encontro com pessoas que, por sua vez, estiveram em contato com Ele. Foi assim desde os inícios. Sempre se requer uma adesão consciente, uma vez que, por sua natureza, a fé cristã tende a comprometer a vida da pessoa por inteiro e a direcioná-la para uma opção coerente com o Evangelho.

Há muitas opiniões acerca de Jesus, sempre houve. Elas, de alguma maneira, representam modos de ver Jesus. Por exemplo, lembro-me que nos anos 70, o espetáculo Jesus Cristo Superstar trouxe uma interpretação de Jesus que o aproximava de certos movimentos culturais que na época eram tendência. Mas se tratava de uma forma de ver. Mas Jesus não é uma opinião que se adapta ao gosto do cliente, Ele é Deus encarnado. Não se trata do Cristo que eu gosto, mas do Cristo como Ele é.

A resposta de Simão Pedro, “tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, indica que para conhecer Jesus é preciso estar aberto ao dom que ele é e que o Pai nos oferece. Por isso, Jesus diz a Pedro que só pôde responder acertadamente à pergunta porque o Pai agiu no seu coração.

A tarefa de conhecer Jesus requer um aprofundamento durante a vida inteira e também a humildade de acolher a resposta de Pedro que é sempre atualizada nos caminhos da Igreja. É na experiência eclesial que se pode descobrir o verdadeiro rosto de Cristo e, a partir daí, iluminar a própria vida e os caminhos da história. Este é um desafio que nos corresponde hoje também.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

A oportunidade do momento presente

abril 25, 2020 / no comments

Um trecho dos Atos dos Apóstolos, lido recentemente na liturgia pascal, nos conta como os apóstolos, colocados na prisão por causa do testemunho do Evangelho, foram milagrosamente libertos por um anjo que lhes abriu uma porta e lhes ordenou que fossem contar ao povo, no Templo, tudo o que se referia àquele novo modo de viver (cf. At 5, 17-26).

O contexto desfavorável para a missão, naquela primeira hora da comunidade cristã, foi transformado em oportunidade. A Providência divina encontra meios de abrir portas às prisões que nos são impostas. Lembro-me do relato de um frade dominicano que tendo sido designado para uma missão em Cuba, espantou-se ao ver o sorriso das pessoas do local, enquanto passavam fortes restrições de todo o tipo, devido ao regime ditatorial que enfrentavam. Ele perguntou a uma pessoa sobre como ela continuava mantendo o sorriso numa situação tão deprimente. Ela então respondeu: “o sorriso é o que temos, o que nos resta. E isso não podem nos tirar”.

Há sempre um espaço que não deixa de ser nosso. Precisamos tomar consciência disso e apossar-nos daquilo que temos como oportunidade em qualquer situação que atravessamos na vida. Há sempre algo a adicionar quando parece que só estamos perdendo.

Ouvi alguém comentar que as pessoas estão se reinventando, no contexto da pandemia. Reinventar-se para não se paralisar na lamentação. Nada mais cristão do que o velho ditado: “fazer limonada com o limão que a vida oferece”. Talvez alguém diga que essas palavras caberiam bem em um livro de autoajuda, mas não diante do que está acontecendo. É bom lembrar que as pandemias registradas na história foram também ocasião de fortalecimento e progresso para a humanidade e não apenas de sofrimento.

Além disso, o espírito cristão tem seu apoio na fé no Cristo Ressuscitado, vencedor do pecado, do mal e da morte. A visão que o cristianismo tem do mundo e da história possuia sua base na fé na criação e na nova criação inaugurada por Cristo. Por isso, é próprio do cristão abraçar a humanidade com otimismo e esperança. A atual urgência sanitária desafia a nossa visão acerca de tudo,desde o modo como nos relacionamos com a natureza ao aspecto mais importante das relações com Deus e entre nós. Esta pandemia pode nos ajudar a retornar à base daquilo que, de fato, somos, sem retrocessos diante das autênticas conquistas da humanidade.

Nas encruzilhadas da vida, Deus se encarrega de se aproximar de nós e nos ajudar a ver que se pode abrir uma estrada no deserto, que há sempre um novo caminho que pode ser percorrido. Podemos, talvez, nos paralisar diante da pergunta que todos nós fazemos: até quando isso vai se prolongar? É fácil parar aqui e procurar ajeitar as coisas simplesmente esperando a tempestade passar. Na verdade, não sabemos muito sobre o tempo, mas sabemos que temos esta hora, este momento. O agora é ocasião de cuidados, de restrições, de sobressaltos econômicos, e de tantas outras coisas que estamos enfrentando, cada um a seu modo. Mas o agora é o que temos e não o depois, aproveitemo-lo! Fujamos da tentação de procurar refúgio no passado ou da fuga imaginária para um futuro que sequer sabemos se será ou não o nosso.

O Evangelho nos oferece a sabedoria de aproveitar como oportunidade o momento presente: “a cada dia basta o seu cuidado” (Mt 6, 34).