Dez referências para (re) humanizar as relações

março 7, 2021 / no comments

Dez referências para (re) humanizar as relações

 

Uma das primeiras coisas que se aprendem na religião cristã, como base até mesmo da reflexão acerca do comportamento moral, é o código de Leis, tradicionalmente chamado de Dez Mandamentos. Muitos de nós nos lembramos da preocupação inicial para aprendê-los de cor, como requisito indispensável da catequese sacramental nas paróquias. Infelizmente, pode se dar o fato de aprender o enunciado dos Dez Mandamentos, mas não aprofundar o sentido teológico e antropológico que eles têm.

Alguns autores, como C.S. Lewis, empenharam-se por mostrar que as grandes civilizações antigas traziam códigos morais em que muitos preceitos coincidiam com a Lei dada por Deus a Moisés para guiar o povo de Israel, mesmo antes da história do povo hebreu. Tal coincidência, segundo muitos autores, pode ser um indício de que essas referências não sejam enunciados de leis arbitrárias, mas correspondam ao que está no íntimo do coração de todo homem e toda mulher.

Os Dez Mandamentos foram na história de Israel mais do que um código de leis. Eles eram um sinal da Aliança que Deus havia feito com o povo. Portanto, Israel sempre teve claro que “antes dos mandamentos de Deus estava o Deus dos mandamentos”, conforme afirmação de São João Paulo II. De fato, no Livro doÊxodo, antes de entregar a Lei a Moisés, Deus diz: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20, 2).

A doação da Lei é parte integrante do processo de libertação do povo. Os Dez Mandamentos apresentam a pauta para uma vida livrede escravidões que degradam a pessoa humana e a aprisionam nos emaranhados de interesses que não visam à plena realização dos ideais humanos.

No Novo Testamento, Jesus retoma essas referências e as aperfeiçoa ao colocar no coração dos mandamentos a lei do amor. Assim, Cristo diz que o primeiro mandamento é amar a Deus e o segundo, é semelhante e tem a ver com o amor ao próximo. Como diz Santo Irineu, “o Senhor prescreveu o amor para com Deus e ensinou a justiça para com o próximo, a fim de que o homem não fosse nem injusto nem indigno diante de Deus” (Contra os hereges, 4).

Os mandamentos falam de uma “ordem” no amor que garante ao ser humano chegar ao ideal de realização de sua humanidade. Percebe-se neles um escalonamento nas relações que abrangem a todas as pessoas. A referência a Deus é a primeira, uma vez que todos somos criaturas suas. Quando essa indicação passa a não estar presente, também as outras relações ficam prejudicadas. Ter Deus como horizonte da vida permite colocar no justo equilíbrio a relação com os outros seres humanos (o próximo) e com toda a realidade criada.

Ensina o Catecismo da Igreja Católica que ao mesmo tempo que os Mandamentos pertencem à Revelação divina, eles “nos ensinam a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e, portanto, indiretamente, os direitos humanos fundamentais, inerentes à natureza humana” (n. 2070).

A liturgia quaresmal deste 3º domingo da quaresma traz, em uma das leituras, a passagem do Êxodo relativa aos mandamentos (20, 1-17). É uma oportunidade de redescobri-los à luz do amor e do interesse de um Deus que luta com o ser humano pela sua libertação integral e que, por isso, quis deixar-lhes 10 referências para uma vida plena.

Em um mundo tão confuso e hostil, ter essas referências pode colaborar para um processo de “re-humanização” de muitas de nossas relações.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.

Transfigurar a realidade

março 1, 2021 / no comments

Transfigurar a realidade

 

O segundo domingo da Quaresma traz como tema central das leituras da missa a Transfiguração do Senhor no Monte Tabor, junto a três de seus discípulos mais caros. É interessante notar que isso acontece na viagem que Jesus faz para Jerusalém, onde sofrerá a morte na cruz. Trata-se de uma “parada obrigatória” para entender o mistério do sofrimento e da dor que o aguarda mais adiante e que estaremos revivendo nas celebrações da Semana Santa.

Os discípulos ficam maravilhados ao contemplarem o rosto de Jesus de uma forma que ainda não tinham visto. Nele resplandecia uma luz que não vinha deste mundo. O próprio evangelista diz que “suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar” (Mc 9, 3). Com o tempo os discípulos compreenderão que aquela “parada” na viagem era para eles garantia da autenticidade do testemunho de Cristo e força para seguir Jesus com esperança, especialmente nos momentos confusos e de desesperança. Anos mais tarde, São Pedro ainda recordará aquela “voz que vinha do céu” (1 Pd 1, 18). Certamente ela terá ressoado nos momentos críticos pelos que a sua vida e a sua missão tiveram que enfrentar. Esta é uma primeira lição importante do evento da Transfiguração: as coisas não saem do controle de um Deus que é amor e que, em meio às mais variadas situações, caminha na estrada dos homens e mulheres de todos os tempos.

Contextualizando o fato, o evangelista Marcos, destaca que Jesus levou Pedro, Tiago e João a um lugar à parte, sobre uma alta montanha e lá, transfigurou-se diante deles (9, 2). Trata-se de um fato que escapa ao ritmo diário a que estavam acostumados, entram em outra dimensão, na dimensão de Deus. Por isso, a solidão, o silêncio e o distanciamento do cotidiano oferecem o ambiente para poder penetrar na realidade de Deus e, consequentemente, na realidade de si mesmo e do mundo que nos rodeia. Aqui lembramos que a experiência cristã autêntica não pode acontecer sem uma mística caracterizada pela oração. A oração não é um mero repetir de fórmulas aprendidas de cor, ela é um lugar de transformação, indispensável para a vivência da fé. Sem essa mística o cristianismo se transforma numa mera ética de propósitos feitos e mal realizados, pois sem a graça de Deus não podemos amar até o fim.

Mas, em suma, o que significa a Transfiguração? Ela é um fato na vida de Jesus, mas que não deixa de fora a nós que somos seus discípulos. Ela revela Deus próximo, que “atravessa” com a sua presença a história do ser humano, para lembrar que seus caminhos não são solitários, mas continuamente visitados por Deus.

O que acontece com Jesus, é uma proposta de Deus para todos os cristãos e cristãs. Na caminhada quaresmal nos lembramos que tudo isso acontece nos sacramentos da Iniciação cristã (Batismo, Crisma e Eucaristia). Mais do que meras formalidades, os sacramentos são para a transfiguração da pessoa como filho e filha de Deus. Deus deseja nos transformar, com a sua presença, com a sua Palavra e com a sua graça. A transformação que Ele deseja fazer em nós é uma verdadeira revolução de mente e de coração que tem a ver com a transformação do mundo.

O ser do cristão e da cristã é marcado por uma tensão pelo bem que Deus quer realizar na humanidade através de nós e do nosso testemunho. Por isso, não dá para viver a fé cristã e ficar indiferente, sobretudo quando vemos um mundo tão distante do projeto de Deus que quer salvar a humanidade do pecado e de suas consequências. Que a caminhada quaresmal nos comprometa com a “transfiguração” deste mundo para que nele possa aparecer a luz do rosto de Cristo.

 

Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.