Transfigurar a realidade
O segundo domingo da Quaresma traz como tema central das leituras da missa a Transfiguração do Senhor no Monte Tabor, junto a três de seus discípulos mais caros. É interessante notar que isso acontece na viagem que Jesus faz para Jerusalém, onde sofrerá a morte na cruz. Trata-se de uma “parada obrigatória” para entender o mistério do sofrimento e da dor que o aguarda mais adiante e que estaremos revivendo nas celebrações da Semana Santa.
Os discípulos ficam maravilhados ao contemplarem o rosto de Jesus de uma forma que ainda não tinham visto. Nele resplandecia uma luz que não vinha deste mundo. O próprio evangelista diz que “suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar” (Mc 9, 3). Com o tempo os discípulos compreenderão que aquela “parada” na viagem era para eles garantia da autenticidade do testemunho de Cristo e força para seguir Jesus com esperança, especialmente nos momentos confusos e de desesperança. Anos mais tarde, São Pedro ainda recordará aquela “voz que vinha do céu” (1 Pd 1, 18). Certamente ela terá ressoado nos momentos críticos pelos que a sua vida e a sua missão tiveram que enfrentar. Esta é uma primeira lição importante do evento da Transfiguração: as coisas não saem do controle de um Deus que é amor e que, em meio às mais variadas situações, caminha na estrada dos homens e mulheres de todos os tempos.
Contextualizando o fato, o evangelista Marcos, destaca que Jesus levou Pedro, Tiago e João a um lugar à parte, sobre uma alta montanha e lá, transfigurou-se diante deles (9, 2). Trata-se de um fato que escapa ao ritmo diário a que estavam acostumados, entram em outra dimensão, na dimensão de Deus. Por isso, a solidão, o silêncio e o distanciamento do cotidiano oferecem o ambiente para poder penetrar na realidade de Deus e, consequentemente, na realidade de si mesmo e do mundo que nos rodeia. Aqui lembramos que a experiência cristã autêntica não pode acontecer sem uma mística caracterizada pela oração. A oração não é um mero repetir de fórmulas aprendidas de cor, ela é um lugar de transformação, indispensável para a vivência da fé. Sem essa mística o cristianismo se transforma numa mera ética de propósitos feitos e mal realizados, pois sem a graça de Deus não podemos amar até o fim.
Mas, em suma, o que significa a Transfiguração? Ela é um fato na vida de Jesus, mas que não deixa de fora a nós que somos seus discípulos. Ela revela Deus próximo, que “atravessa” com a sua presença a história do ser humano, para lembrar que seus caminhos não são solitários, mas continuamente visitados por Deus.
O que acontece com Jesus, é uma proposta de Deus para todos os cristãos e cristãs. Na caminhada quaresmal nos lembramos que tudo isso acontece nos sacramentos da Iniciação cristã (Batismo, Crisma e Eucaristia). Mais do que meras formalidades, os sacramentos são para a transfiguração da pessoa como filho e filha de Deus. Deus deseja nos transformar, com a sua presença, com a sua Palavra e com a sua graça. A transformação que Ele deseja fazer em nós é uma verdadeira revolução de mente e de coração que tem a ver com a transformação do mundo.
O ser do cristão e da cristã é marcado por uma tensão pelo bem que Deus quer realizar na humanidade através de nós e do nosso testemunho. Por isso, não dá para viver a fé cristã e ficar indiferente, sobretudo quando vemos um mundo tão distante do projeto de Deus que quer salvar a humanidade do pecado e de suas consequências. Que a caminhada quaresmal nos comprometa com a “transfiguração” deste mundo para que nele possa aparecer a luz do rosto de Cristo.
Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB.