Quando uma pessoa se sente ofendida por outra, normalmente o suposto ofensor, ao perceber a reação do ofendido, reflete acerca de seus atos e pondera para ver se aquilo que ele fez é proporcional à reação causada. Caso reconheça o exagero de sua ação, é coerente e recomendável que peça perdão pelo ato cometido e não insista na ofensa. Este simples aceno a uma realidade que faz parte do nosso cotidiano pode nos servir, de alguma forma, para nos ajudar a seguir refletindo sobre o que vem sendo objeto de questionamento da parte de muitos cristãos acerca do “especial de Natal” do grupo Porta dos Fundos.
As inúmeras publicações e os recursos à justiça, reagindo negativamente à produção, manifestam como as versões sarcásticas de Deus, de Jesus, como também de Maria e São José, apresentadas no “especial de Natal”, feriram o nosso sentimento religioso. Aliás, tem sido recorrente a manipulação da “arte”, em suas múltiplas expressões, para caçoar de elementos sagrados da fé cristã. E quando os cristãos reagem negativamente são taxados de retrógrados, intolerantes, etc. É bem oportuno lembrar o que disse algumas vezes o filósofo Luiz Pondé, colunista da Folha de São Paulo: “o único preconceito considerado ‘científico’ nos jantares inteligentes é o preconceito contra a Igreja Católica”. Na prática, parece funcionar assim: “riam das realidades sagradas dos cristãos e que eles simplesmente se calem”. A meu ver, isso beira à intolerância…
Causa-me estranheza que em nome de um legítimo direito, o da liberdade de expressão, se permita veicular produções artísticas que firam o sentimento religioso. Ao dar a liminar, autorizando a exibição do dito “especial de Natal”, o ministro Dias Toffoli alegou que o Supremo Tribunal Federal tem reforçado “a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”. Ora, essa mesma dignidade humana pede que se respeite o sentimento religioso, fruto das convicções religiosas de cada um, independentemente de sua crença.
A liberdade de expressão pertence a esse mundo de palavras cotidianas, usadas para muitos fins: comunicação, imprensa, partidos políticos, ONGs, etc. O risco das coisas usadas para muitos fins é precisamente o de esvaziar o seu verdadeiro e próprio sentido. Um exemplo simplório: em nome da liberdade de expressão há quem faça apologia à não vacinação nesse país, e assim assistimos o retorno de epidemias já erradicadas.
A liberdade de expressão é um valor indiscutível, mas pode-se abusar dela quando se ferem outros direitos que requerem igual proteção. Não se trata, portanto, de menosprezar esse valor, mas de garantir o legítimo respeito aos sentimentos religiosos. É preciso que se respeite o que as pessoas conhecem e acreditam acerca de suas tradições religiosas e quando isso não acontece, que haja a devida reparação do dano causado.
Por outro lado, é bom ressaltar que, nas últimas décadas, tem havido um esforço em muitas direções para favorecer maior conhecimento e respeito recíproco entre os diversos seguimentos religiosos. Quando se autoriza o desrespeito aos sentimentos religiosos estamos colocando em risco o caminho delicado e importante que já foi percorrido.
A questão, no entanto, pode suscitar uma interessante reflexão sobre a importância e o valor do sagrado na vida das pessoas e da sociedade, uma vez que a valorização do sagrado e o desenvolvimento das civilizações ao longo da história estiveram sempre juntos.
Artigo de Dom Gilson Andrade da Silva, bispo de Nova Iguaçu (RJ) e Vice-presidente do Regional Leste 1 – CNBB